Se você estiver lendo esse texto em um futuro distante no qual o Brasil já é hexa, os impostos sobre os jogos caíram e as Coreias foram unificadas, é bom que saiba que, no dia 27 de outubro de 2012, estávamos chegando ao fim uma semana bastante significativa para o que chamamos de “jornalismo de games“. E o mais surpreendente nisso, pessoa do futuro, é que devemos tudo a um pacote de Doritos, um pôster e Halo 4 e algumas garrafas de Mountain Dew – seja lá o que isso for. Confuso? Vamos refrescar a sua memória então.
O cara que você vê na foto acima com expressão de burro castrado é Geoff Keighley, proeminente jornalista de joguinhos e produtor do anual show de horrores conhecido como VGA (Video Game Awards, pros leigos). Ele estava gravando uma entrevista para o site Pixel Perfect e COINCIDIU de haver um pacote de Doritos e garrafas de Mountain Dew ali no cenário. Outra coincidência engraçada: os fabricantes desses produtos estão patrocinando uma promoção que dará o dobro de experiência (ou qualquer merda do tipo) em Halo 4 e, olha só, tem um pôster com o Master Chief ali também.
Obviamente as pessoas ligaram os pontos e caiu a ficha do que essa imagem representa: um jornalista estava sendo usado para promover conteúdo de um futuro lançamento importante. A repercussão foi negativa pra caralho (só ver a quantidade de dislikes no vídeo da entrevista) e a foto virou estandarte de tudo que há de mais podre e vil nesse ramo. A cena serviu também de inspiração para que Robert Florence, vulgo Rab, escrevesse algumas verdades na Eurogamer sobre a relação entre jornalistas e as relações públicas das publishers de jogos.E é aqui que a coisa fica realmente interessante: o texto de Rab abriu um portal que conecta o nosso mundo à terra de planícies coloridas e felizes dos Teletubbies.
No mundo dos Teletubbies viviam em paz e harmonia todos os jornalistas e marketeiros que não vêem nada de errado e desonesto em unir forças para promover a beleza e o esplendor dos jogos AAA com orçamentos milionários. Enquanto isso, no mundo real, a imagem de Geoff Keighley com cara de bunda ao lado de um pacote de Doritos lembrava os jogadores de que os tais orçamentos milionários – que têm boa parte destinada à publicidade – podiam adestrar as pessoas que escrevem em alguns dos maiores e mais importantes veículos de comunicação sobre games. Essas visões da realidade desceram como Yakult quente no estômago da turminha das planícies coloridas, fazendo com que muitos “profissionais” ficassem indignados com o texto publicado na Eurogamer.
Resumindo a treta, uma jornalista, Lauren Wainwright, foi citada no texto por ter demonstrado no Twitter que não via nada errado em twittar hashtags publicitárias pra entrar em uma rifa valendo Playstation 3. Ciente disso, a Intent Media (empresa onde a moça trabalha) pediu à Eurogamer para censurar o artigo removendo a citação. Nada de nota explicativa, nada de tréplica. Só calar a boca e remover. E, infelizmente, foi o que eles fizeram. Você ainda pode ver o trecho original aqui se quiser e constatar que não rolou nada de mais. Na verdade, Rab foi bem razoável e ponderado no ponto que estava levantando – ponto que acho muito certo, inclusive. E com todo esse rebosteio, Rab Florence caiu fora da Eurogamer.
Sim, um jornalista questionou a integridade moral da “brotheragem” entre publishers e a imprensa e foi crucificado por isso. Em um mundo ideal (que não é o real e nem o dos Teletubbies), questionar isso deveria ser obrigatório a todos que resolvessem escrever profissionalmente sobre jogos. E é justamente por isso que é difícil botar fé nesse tal “jornalismo de games”. Muitas pessoas que atuam na área não fazem a menor ideia das responsabilidades envolvidas e se comportam como meros fãs, empolgados com a fantasia infantil de poder “trabalhar com videogame” e vulneráveis a todo tipo de agradinho e manobra publicitária.
Não me entenda mal, eu não acho que toda essa turma que escreve pra grandes sites e revistas é composta por pessoas desonestas e oportunistas. Esse tipo teoria da conspiração funciona como roteiro de filme B, mas fica forçado pra caralho na vida real. Acho que é bem mais simples do que isso: tem gente que é simplesmente inconsequente. Não apenas isso, mas parece que esse povo realmente vive em um mundinho colorido e fechado onde convém fingir ser algo que você não é. As pessoas se levam a sério demais, se dão muita importância e acabam ficando cegas. Não enxergam a diferença entre ser um fã que ganha escrevendo sobre jogos e ser um jornalista realmente comprometido com a ética da profissão.
Jornalista de qualquer área tem que ter bolas de aço. Se falarmos especificamente de videogames, existem alguns agravantes que o profissional deve ter em mente, porque ele está uma posição bem filha da puta. Pensa comigo: qual é a maneira mais comum de um site sobre games ganhar algum dinheiro? Publicidade. E quem acharia mais interessante anunciar algo em um site de games? Pela lógica, uma empresa cujo produto tem a ver com games. Na maioria das vezes, são justamente publishers dando algum fim na verba de publicidade dos seus jogos mais importantes.
Esse cenário faz com que muita gente confunda as coisas. Começa a reparar: se você está em um site lendo a análise do mesmo jogo que está sendo anunciado na imagem de fundo da página, é muito difícil que a crítica seja negativa e/ou muito exigente. Fica mais complicado ainda quando você pensa que a pessoa que está escrevendo é fã de videogames e talvez se sinta honrada de poder interagir com produtores e/ou publishers de franquias que ela curte há anos. Com tudo isso em jogo, o jornalista pode esquecer que o seu papel enquanto crítico é fazer do trabalho desses produtores um inferno e elevar os padrões de qualidade.
Sempre relevante
Essa treta na imprensa gringa também serve de exemplo para o mercado brasileiro. Como somos ~a bola da vez~, cada vez mais grana está sendo investida na localização e divulgação dos jogos por aqui. É muito importante que as publishers instaladas aqui conheçam seus limites nessas questões éticas enquanto o mercado está tomando forma, ainda em plena ascenção. E é muito importante que os maiores veículos do país tenham jogo de cintura pra lidar com isso também.
Nós aqui não somos nenhum site pica das galáxias nesse sentido, mas eu espero um dia pode apertar a mão de um figurão como o Reggie Fils-Aime, deixar um cartão de visitas e talvez até combinar aquele churras™. Mas depois disso eu não vou poder amarelar se precisar dizer com todas as letras que Mario 2D tá enchendo o saco ou que os serviços online da Nintendo são fraquíssimos. Tudo isso faz parte do trampo, e quanto mais cedo a galera aprender a lidar com isso, melhor.
A imagem de Geoff Keighley que abriu esse texto é um jovem clássico que serve como exemplo de tudo aquilo que não devemos seguir. Quando você estiver internet afora lendo algo sobre videogames, lembre-se dessa foto e veja se consegue identificar os pacotes de Doritos e garrafinhas de Mountain Dew nas entrelinhas do texto.
O resultado pode ser surpreendente.
PS: Se você realmente estiver lendo isso em um futuro distante, torço para que tudo esteja muito melhor e que esteja rindo ao pensar em como o jornalismo de games era juvenil em 2012. Agora, se estiver tudo uma merda e essa treta do Doritos tiver sido o começo do fim, espero que reconheça que nós tentamos…
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