O conceito de “Cena” em Dark Souls

  14/01/2014 - 18:11   dark souls, designsfoda,  
 

Antes de mais nada, a “cena” que eu vou falar aqui não é o esquema de cutscene, filminho ou  como quer que tu chame – essa cena que eu estou dizendo é uma parada metafórica pra se ter um palco (cenário) e poder gravar várias coisas (as “cenas”) diferentes usando esse mesmo cenário. Onde isso se aplica em joguinho, então, e ainda mais em Dark Souls? Vou explicar!

Vamos supor que você seja um modelador que, em vez de trabalhar numa Pixar da vida, trabalha em uma empresa de videogame. Você passa oito, dez, doze horas por dia fazendo cenário pro bonequinho andar – criando nuances e detalhes, colocando seu amor mesmo já que você escolheu fazer um trabalho em menor escala só pra ser o que você quer. Aí depois de passar anos da sua vida fazendo isso pro mesmo jogo, vem algum jogador meio apressadinho e corre tudo o que tem que correr pra “zerar mais rápido” e mostrar pra todo mundo que achou Dark Souls fácil e se mostrar na internet (eu, por exemplo, matei a Queelag de primeira). Nisso ele não está realmente prestando atenção no trabalho que o coitado do modelador botou lá. 

Pra evitar esse tipo de coisa, os designers fazem algo pra parecer que a área é relevante – em Zelda você passa pela mesma sala várias vezes enquanto anda pras outras; em Final Fantasy XIII você praticamente SÓ TEM o cenário pra prestar atenção já que ele é estupidamente bonito etc. A solução de Dark Souls, no entanto, é um pouco fora do comum e é tão ligada com o sistema interno do jogo que isso faz com que ela seja um exemplo de level design pra todo e qualquer um que tenha interesse em videogame, seja desenvolvendo-os ou apreciando-os.

fazendo aqui um personagem novo

fazendo aqui um personagem novo

Pra quem nunca jogou, deixa eu dar um resumo de como funciona por cima: o jogo tem diversos pontos chamados “bonfires”, que são fogueiras, e servem como checkpoints. Mas são checkpoints um pouco diferentes: você salva o jogo neles, aumenta seu level e tudo o mais, mas conforme avança, se morrer, perde todas as “almas” (que você usa pra fazer tudo no jogo, desde pontos de experiência até dinheiro) e reaparece nesse bonfire. O TWIST é que os inimigos reaparecem, mas se você conseguir chegar até onde chegou da última vez, sua poça de sangue estará lá e você vai poder recuperar as tais almas. Como o jogo ficou famoso por ser difícil, essa é a maior motivação que você tem pra melhorar nele. É simples, mas é sagaz.

Mas o negócio da “cena” entra aí: como você vai morrer várias vezes, vai ter que passar pela mesma área várias vezes. Porra, que chato ficar repetindo, né? AÍ QUE SE ENGANA! Por saberem que as áreas seriam repetidas, depois de ouvir a lágrima de alegria do modelador rolando pela sua bochecha lisinha e japonesa e caindo na mesa, os level designers resolveram botar coisas que não se repetiriam nunca na mesma área. Então, nem todos os inimigos dão respawn, só os “mobs” genéricos. Os maiores, inimigos que tem alguma relevância pra história e tudo o mais (mesmo não sendo bosses), não vão reaparecer quando você morre e vai pro bonfire. Num esquema psicológico de risco e recompensa, só de você saber que vai ter que lidar com um inimigo a menos já te motiva a tentar mais uma vez já que agora vai.

Quero usar como exemplo uma área específica do jogo: aquela igreja gigante, antes de se tocar o primeiro sino, antes de se enfrentar as gárgulas, em Undead Parish, levando em conta que você vem do bonfire do Andrei (pra quem não jogou e não reconhece os nomes ou simplesmente jogou e não lembra, vão ter imagenzinhas pra facilitar a compreensão).

esquemática

esquemática

Vamos explicar: você vem desse caminho inferior (é lá que fica o “bonfire do Andrei”, que eu disse). Os primeiros três pontos vermelhos são uns inimigozinhos tontos (os dois da esquerda usam espada, o da direita usa uma besta). Você entrando no prédio, do lado direito vai ter um guerreiro fodidaço que serve quase como um miniboss – ele é a carinha de brava azul. A carinha de brava amarela está no andar de cima e é um mago que atira à distância, que você alcança só se matar o bicho no topo delas (o ponto vermelho mais gordinho), e ele tem um monte de zumbizinho tonto que pode te matar em volta, mas só se te pegarem por todos os ângulos. Embaixo desse mago tem três inimigos (os pontos brancos) que estão olhando pro outro lado, então dá pra passar essa área sem nem enfrentá-los, a não ser que você queira abrir um portão do lado de fora da igreja que é útil pra navegação do mundo até certo ponto. Enfim, depois de matar o mago é que o caminho fica livre pra você enfrentar o chefão. Por partes, então!

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Esse aí sou eu (tentei deixar o mais parecido possível com meu avatar do site mas esqueci do detalhe de que só apareceria direito se eu não estivesse como undead). A seta azul é o caminho pra dentro da igreja – onde eu tenho que ir, e as coisas vermelhas são os três primeiros inimigos que eu apontei – os dois com espada e o com a besta. Eles são bem fáceis de se lidar: é só correr e matar o com a besta primeiro pra não ficar tomando dano de tonto enquanto mata os de espada. Com dois, três ataques no máximo você mata cada um. Hora de entrar na igreja!

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Ali você vai ver o boneco que eu disse que é praticamente um miniboss, vindo do caminho que a mesma seta azul apontou na imagem anterior. O problema é: embora o “certo” seja atrair ele no caminho da seta verde, onde você já lidou com os inimigos e tem uma área maior pra lutar, a maioria das pessoas vai se assustar com o tamanho e correr pra direção contrária – onde tem o mago que ataca a distância e os inimigos que você nem precisaria chamar atenção, então ela vai morrer e se achar meio tonta por não correr pra área que sabia que era segura ao invés de correr pra terreno desconhecido. Dito isso: primeira cena fechada.

Na segunda vez, você vai lá matar os três inimigos tontos de novo, avançar com cuidado até onde tá esse maluco aí e atrair ele até onde os inimigos estavam. A AI é dele é feita de maneira que ele seja agressivo o bastante pra te seguir quando tu chegar em ponto X mas de maneira que seja possível você vê-lo antes e planejar pra onde  ele vai te seguir. A maneira mais segura, como eu disse, é de volta pra fora da igreja, então…

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Pronto, esse é um ângulo diferente da área da primeira imagem, mas sem os inimigos que você já matou. É uma área maior, melhor pra se esquivar dos ataques enfrentá-lo, já que esse é um inimigo complicadinho no começo do jogo. Você rola, ataca, desvia e defende, e depois de alguns minutos terá conseguido matá-lo (ou terá morrido várias vezes durante o processo, mas vamos assumir que foi de primeira pra não exagerar nas proporções do artigo). No entanto, por ser um inimigo difícil, a essa altura você provavelmente está com pouca vida e poucos itens de cura. Nisso você  decide voltar pro bonfire já que, adivinha só: esse inimigo não vai dar respawn! Então você descansa aliviado, recupera seus Estus Flask (que são a coisa que recupera seu HP) e vai à luta mais uma vez, dessa vez sabendo que vai conseguir prosseguir. Segunda cena fechada.

Yaaaay! Mata os três tontinhos de novo e entra na igreja, mas dessa vez se lembra das coisas que estão do lado esquerdo da tela: o mago e os inimigos de costas.

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Nesse ponto você tem três opções:

a) tentar matar os três guerreiros só por precaução e arriscar chamar atenção do mago;

b) caso você tenha um arco, tentar matar o mago do andar debaixo mesmo;

c) tentar matar o mago CARA-A-CARA, subindo a escada e chegando onde ele está;

Se você for pra opção A, boa sorte. Você nunca enfrentou esses inimigos em mobs de 3 antes (nem de 2) então pode ser que seja difícil, mas não é impossível! Problema é: esses dão respawn quando você descansa num bonfire, então entra de novo na coisa do risco e recompensa. Pra valer a pena, você tem que matar os três sem tomar tanto dano que te obrigue a ir descansar, pois aí será em vão. A opção  é a mais segura, mas as chances de você ter um arco a essa altura do jogo não são muito grandes, a não ser que tenha começado com a classe que inicia com o arco. De qualquer maneira é válido! Essa opção vai dar um resultado diferente quando você subir as escadas já que o mago não dá respawn. Você pode voltar pra descansar se quiser, então vamos chamar de “Terceira cena 1“.

A opçãoterá o mesmo resultado da opção A, já que os carinhas de costas não são relevantes pra essa área em questão se você não for pro lado deles. Você vai ter que subir as escadas pra matar o mago com a espadinha mesmo. Mas ao subir as escadas…

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Oh não! Tem um carinha nelas em um ângulo que faz com que você tenha que estar em uma posição específica pra conseguir atacar – mas ele não é muito difícil estando sozinho (é da mesma espécie dos três que estão de costas). É o mesmo inimigo enfrentado em um contexto diferente que faz com que toda a luta seja praticamente uma nova, e isso é sensacional. Mas enfim, você mata ele e continua subindo pra dar uns tabefes no mago.

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E o filho da puta tá dançando. Sério, que cara insuportável! Se você ficar na janelinha ele consegue te acertar com uns raios, então é só passar correndo e dar umas machadadas nele que pronto, acabou o pesadelo. HÁ

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Ele não tava sozinho. Tem mais um monte de inimigozinho besta, mas que consegue fazer um estrago grande caso consiga te pegar em ataques consecutivos. Como você não estava preparado pra eles…

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Você morre. Tão perto da escadinha que leva pro chefão. Triste, né? Mas agora você sabe que vai ter esse monte de gente lá então vai preparado da próxima vez!  Se você tivesse matado o mago antes, com o arco, como na opção esses inimigos seriam mais tranquilos já que ele não estaria lá pra dar buff neles então é capaz que conseguiria ir direto pro chefe. Mas sendo esse o resultado da opção A ou C,  terceira cena 2 fechada.

Você renasce, mata os três bichinhos lá fora da igreja, anda até a escada, mata o cara da escada e dessa vez sabe que vai ter um monte de gente perto do mago. Corre pra chamar atenção deles mas volta pro corredor, em um lugar que o mago não consiga te acertar com os raios. Presta atenção nos inimigos e aproveita o alcance da sua arma, acertando mais de um de uma vez, eles morrem com dois ataques no máximo, então pronto, estão todos mortos, restando apenas o mago. Ele não é tão assustador de perto, dá pra matar com uns três ataques também (é um mago, né…) e AÊ, ele não dá mais respawn! Dá pra você voltar e descansar que não vai ter que lidar com ele de novo nem com os bichinhos com buff. Pra matar os bichinhos com buff é só ficar parado no corredor atacando, pois eles são burros o suficiente para continuarem correndo na sua direção. Quarta cena fechada.

Agora você pode subir e morrer mais quarenta vezes nas gárgulas sem se preocupar mais em ter problemas com os inimigos mais chatos sempre que for reviver no bonfire. 😀

PRAISE THE SUN PORRA!!!!

CONSEGUI ROUPAS!!!!!!

Ficou claro o que eu quero dizer? Dark Souls é um jogo que embora tenha um mapa aberto pra ir em diversas áreas diferentes, cada uma dessas áreas é linear, e ainda assim, não importa quantas vezes você repita, elas vão se comportar de maneira diferente baseando-se nas suas ações anteriores. Cada área é um cenário em que dá pra gravar várias cenas – é teatral. E cada vez que você senta pra jogar, mesmo que só tenha vinte minutos de tempo, sabe que vai fazer algo diferente do que fez da última vez. Dark Souls é, em cada área, Dark Souls 2, Dark Souls 3 e Dark Souls 4 juntos.

Poucos jogos fazem isso tirando a série Souls. De cabeça só consigo pensar em Metal Gear Solid 3 (dica: o tema de MGS3 ser “SCENE” não se refere só a sua história), que faz isso numa escala ainda maior, onde você tem mais influência do que em Dark Souls. Essa é uma filosofia de design que deveria ser mais usada por, além de ser interessante de um ponto de vista técnico, se refletir de maneira positiva no jogador. Só nesse pequeno pedaço eu apontei cinco maneiras diferentes de como a área vai se comportar caso você a precise repeti-la, e isso faz com que o jogador se sinta com vontade de tentar de novo, de experimentar e de ver até onde o jogo comporta esses experimentos todos.

Então da próxima vez que você ficar com vontade de jogar, lembre-se que independente de, argh, estar naquele boss, assim que matá-lo será apresentado a uma área completamente nova, que terá mais dezenas de maneiras de se prosseguir. Aprecie Dark Souls por algo além de ser difícil! Vai te fazer dar ainda mais valor ao jogo e, se você mesmo estiver fazendo um, tirará algumas lições pra fazer o seu próprio jogo ser mais orgânico. Praise the sun!

PS:  Recomecei o jogo até chegar nessa parte e, assim que cheguei na igreja, alguém me invadiu e eu morri, de modo que perdi uns 15 minutos de progresso. Admitidamente fiquei meio puto aí 🙁

 

Sobre

Guilherme Alves “Neozao” é game designer não-praticante, gosta de chá e de comer sobremesa com a menor colher possível.
  • "(eu, por exemplo, matei a Queelag de primeira)"

    Neozão se achando nas interwebs.

    Agora se falar que matou o Manus de prima, dai sim pode se gabar.

  • sickrenton

    Ótimo texto Neozão!

  • Bom demais parabéns neozão fica aqui meu vale abraço válido até 14/01/2015
    _________________
    |||| ..VALE ABRAÇO ||||
    ||| ..val 14/1/15……….||||
    —————————–

  • palasvuash

    Eu devo dizer que esse foi um texto bastante difícil, Neo. Não só porque eu não joguei Dark Souls. A ideia de "cena" em jogos como elemento teatral é bastante difícil de conceber, porque não é muito comum termos um jogo que coloque o jogador como ator de teatro.

    Isto é, que faça com que o jogador tenha de realizar uma cena com o cenário que se tem, sendo diferente a cada vez. Esse é o conceito (e, dizem, a magia) do teatro. A mesma peça nunca é encenada duas vezes do mesmo jeito porque as circunstâncias mudam mesmo que o texto seja igual. Em jogo isso é difícil de acontecer… a não ser sob essa filosofia aí que você descreve.

    Um jogo que faz isso, embora aparentemente com menos sucesso, é Monster Hunter. Todas as hunts são iguais, mas na verdade não são não. Em cada uma delas você tem que observar o cenário e tirar o melhor proveito dele, porque ele é a única coisa capaz de te colocar em vantagem sobre o bichão. Você tem que ensaiar os movimentos, mas tem que improvisar também. É menos o conceito de cenário como palco, mas está no mesmo caminho. Claro, Dark Souls tem um trabalho conceitual muito mais apurado pra conseguir fazer isso em uma história linear.

    E é um jeito muito bom de explorar a repetição. É algo necessário. Quebrar a ideia do "replay" como parte independente da "primeira experiência".

    • Tu sabe o quanto eu já impliquei com Monster Hunter, mas em algum momento a ideia "clicou" na minha cabeça e agora eu entendo o apelo que teria – em partes, esse mesmo, mas com a adição de se estar dependendo também de outras pessoas tornando as coisas menos controláveis. E, claro, também o fato de estar focado no combate e não na exploração geral.

  • E, indiretamente, o Neozão está te dando um mini-detonado de Dark Souls! Ae! 😀

    No mais, adorei o texto! Nunca tira parado para ver o game por esse viés (talvez tivesse sentido, mas me passou batido).

    E agora fico me imaginando como essa coisa das Cenas rolam no gameplay do MGS3….

  • É justamente isso a ''cena''!!!!!! Por essas e outras (coop e pvp) devo ter terminado o jogo umas 12 vezes, com guerreiros, com magos, com grandes machados, com rápidas foices, com pequenas adagas; a curiosidade nós leva a pensar ''e como seria terminar o jogo com um arco? E só com magias? E sem upar o personagem, apenas as armas? E sem upar as armas, apenas o personagem?…'' pra tudo isso foram 315 horas, isso mestra como o level design é bom, como cada parte pode ser feita de diversas formas e isso nós leva a jogar, jogar e jogar mais um pouco. Há muito tempo não sentia a tensão e o prazer de descobrir cada segredo de um jogo, de derrotar cada chefe, O&S foi o ápice, onde tudo o que foi aprendido é testado, e nessa hora eu tremi, tremi de medo, de ansiedade e de emoção ao conseguir vencer.

    *ficar humano em undead parish é pedir pra ser invadido, eu mesmo tenho um char sl1 apenas pra ajudar ou atormentar os iniciantes a depender do meu humor.

  • larguei mão no capra demon, sou ruinzão mesmo

  • Dark Spuls.

  • Esse deve ser o conceito mais complexo envolvendo gameplay que eu já vi. Engraçado que eu presenciei isso em MGS3 e foi tão sutil que eu não cheguei a pensar que fosse um elemento de cena, mas sim uma mera consequencia dos meus atos no jogo.

  • O jogo foi feito pensado em cenário mesmo, no quanto o jogador pode notar ou não ele… O Solaire ali é um exemplo disso

    • Pois é! Da "varanda" onde tu sai não dá pra ver o Solaire pois a altura é feita de maneira a encobrir ele, mas se você aplicar a exploração que o jogo te ensinou até ali pronto, libera a parte do multiplayer.

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  • Cainã Perotti

    E por isso eu continuo jogando mesmo tendo zerado este delicioso jogo umas 20x.
    Ótima matéria neozão, tu é foda meu.

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