Tem esse jogo, The Evil Within. Ele é do Shinji Mikami, o mesmo cara que fez Resident Evil 4 (entre outros da mesma série), God Hand e Vanquish (esses não tem uma “série” pois é assim que a indústria dos videogames funciona). Esse Evil Within é um “survival horror” (tipo Resident Evil), tem armas e é em terceira pessoa (tipo Vanquish, embora mais cauteloso em seu escopo [mas não menos exagerado]). Até aí tudo ok, só que de repente aparece um inimigo invisível e, baseado em concepções passadas, penso um estrondoso “mas que caralho, viu” e deixo o jogo descansar por um tempo, até porque a performance no meu computador estava lamentável – um jogo feito na idTech 5 por desenvolvedores japoneses pra computador só podia dar errado – e não estava com muita vontade de acabar me irritando por fatores externos ao jogo em si.
Nesse tempo descansando comecei a pensar: por que, afinal, nós odiamos inimigos invisíveis? A resposta é óbvia o bastante, claro: não conseguimos vê-los e portanto não dá pra tomar nenhuma ação retaliativa (ou, pra efeito contrário, também não dá pra fugir e se esconder pois não sabemos onde ele estará procurando). Óbvia demais, até. Eu não quis acreditar que era só por isso e, quando voltei a jogar, observei (risos) e tentei entender o motivo pra ter aquele inimigo invisível ali, naquele lugar específico: uma casinha claustrofóbica com alguns móveis espalhados, com a física aplicada de modo que meu oponente também os empurrasse no chão e eu conseguisse saber onde ele estava.
Tem um negócio engraçado aí: quando o boneco invisível vai te atacar ele fica visível, já na sua frente. Aumenta o impacto e o susto, eu imagino – talvez mais eficiente fosse continuar invisível e matar a presa sem ela nem saber de onde veio, mas imagina como o modelador ia ficar frustrado caso se o resultado de semanas do seu trabalho não aparecesse pro jogador. Outra coisa é que, mesmo não dando pra ver o corpo do cara, se você atirar nele e acertar o tiro, sangue voará mesmo assim e tal sangue conseguimos ver. Não conseguimos ver o cara e nem as roupas dele, mas conseguimos ver o sangue? Como isso funciona? Suponhamos que ele ative uma “camada” de invisibilidade que é perfurada quando acertamos um tiro – o sangue deveria continuar escorrendo depois, o que não é o caso. Pode ser que ele só perca o controle dos poderes ao receber o impacto de uma bala. Ou talvez Shinji Mikami tenha recebido uma luz divina de inspiração de Ingmar Bergman e o tal inimigo invisível só seja invisível pro nosso protagonista, Sebastian Castellanos.
O mais provável é que Shinji Mikami seja um game designer competente e sabe, portanto, que precisamos de algum retorno pras nossas ações – se as mesmas requererem retorno – e que o único modo disso acontecer, na estética à qual Evil Within se propõe a seguir (e segue religiosamente) seria o sangue voando. No artigo (de dezoito mil palavras) do Tim Rogers sobre Final Fantasy XIII, ao começar a divagar sobre números, ele faz uma observação interessante: Monster Hunter usa, no lugar de números, o sangue voando pra dar esse tal de feedback visual que precisamos – se você acerta o monstro no ponto errado, não sai sangue. Se acerta no ponto certo, sai sangue. Se acerta no ponto fraco, sai muito sangue! Isso apenas na versão japonesa, no entanto, já que sair sangue dos monstros na versão americana seria crueldade com os animais. Ai, ai.
Ainda sobre localização: The Evil Within no Japão se chama “Psycho Break”. Aqui ele tem o nome de Evil Within por ser um jogo de palavras que nos remete a “Resident Evil”, que por sua vez tinha, no Japão, o nome de “Biohazard”. Até dá pra traçar um paralelo com a história do jogo usando esse “Evil Within” do mesmo jeito que dá pra traçar um paralelo de Resident Evil com sua própria história: se qualquer um pode virar zumbi então tem um “mal residente” em cada um de nós, né? Mas isso é forçar a barra demais, já que “Biohazard” JÁ É um nome em inglês, que soa bem, e que faz mais sentido. The Evil Within não soa bem. Psycho Break soa e tem um nome impactante. É um nome de videogame, do tipo que independente do seu senso gramatical consegue se destacar de tudo e criar uma identidade própria. Pense em “Metal Gear Solid” – Metal Gear pelo fato do robô gigante ter esse nome e Solid por ser em 3D. São três palavras completamente não relacionadas pra qualquer um que as olhe soltas, mas as juntando a gente tem um nome definitivo que não pode ser atribuído a nada mais e que, de bônus, ainda soa bem quando falamos em voz alta (talvez por não sermos de um país que fale nativamente o inglês, mas a série é japonesa então o ponto continua). A estética sonora das palavras é importante, mais do que muita gente dá crédito.
Eu queria ter jogado um jogo chamado “Psycho Break”, mas estou preso no “Evil Within”, mesmo.
E falando em estética, o Shinji Mikami tem uma coisa com nomes latinos, né? “Sebastian Castellanos” – não dá pra dizer que não soa bem. O nosso protagonista é um cara que trabalha na polícia e vai investigar um crime que aconteceu em uma instituição mental. A partir daí qualquer coisa que eu diga vai servir em detrimento da sua própria experiência de descobrir o que o jogo tá querendo passar. Não que sua história seja fantástica: ela é muito boa, é divertida, convoluta e maluca, mas o mais legal não é a história em si e sim o que ela permite que seja feito com as setpieces do jogo. Mais ou menos como Earthbound – só que com mais sangue e tripas. O que eu quero dizer é que a tal da história é só um pano de fundo em um palco e esse pano de fundo consegue comportar qualquer coisa que você pode imaginar acontecendo nesse palco.
O ponto mais forte disso é que é temos um jogo bastante imprevisível. Qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento e não precisa de uma justificativa racional pra isso tudo: acontece porque alguém pensou “caramba, ia ser da hora se isso acontecesse”. É o único jogo que eu consigo me lembrar de cabeça que cria uma justificativa pra gente não ter um mapa no canto ou no menu. Não que precisasse, também: é bastante linear, como Resident Evil 4 era, mas no lugar de tentar nos enganar com vários corredores sobrepostos e paralelos mesmo que só tivéssemos acesso a um deles por vez, ele só abraça o que é num quase-sonoro “foda-se”. Parece um jogo do Suda51, até.
Alguns reviews usaram palavras como “design ultrapassado” e “preso na época de Resident Evil 4” pra se referir ao jogo e eu fiquei me perguntando o que é isso num contexto em que a disposição de botões em um controle ainda é a mesma. É o “tentativa e erro” que incomodou eles, será? É que em alguns jogos isso é “uma homenagem ao passado” e não “design ultrapassado”. Evil Within tem um pouco de tentativa e erro, sim, e de vez em quando os checkpoints são mais espaçados do que deveriam ser, mas não é algo intrinsecamente ruim, é apenas uma das regras do jogo. Ou será que o que incomodou essa galera foi o fato do jogo não ser tão intuitivo? Ele espera experimentemos na maior parte dos casos, e em alguns deles dá alguma dica breve e direto ao ponto nas telas de carregamento (nenhuma delas essencial, diga-se de passagem).
Talvez o que tenha incomodado seja o fato de que a primeira fase não é um tutorial disfarçado. Nem combate ela tem! Disseram que quando mandaram cópia de review pros sites, essa cópia veio dizendo pros reviewers jogarem na dificuldade mais fácil e com algumas dicas obscuras pra passar dos capítulos mais complicados (nenhum dos capítulos é complicado) e, portanto, isso dizia claramente o quanto o jogo era “ultrapassado”. Curiosamente eu não vi um jogo tão competente em introduzir mecânicas de modo passivo antes delas serem usados em um contexto de sobrevivência desde o primeiro Mega Man, que te colocava em uma tela com plataformas que sumiam sobre um chão seguro e, em seguida, colocava essas mesmas plataformas que sumiam sobre um buraco, esperando que você tivesse aprendido como elas funcionavam na tela anterior, que não tinha como você morrer.
Levando tudo isso em conta e, na mentalidade de que tudo o que está no jogo foi a decisão consciente de algum projetista (salvo bugs e esse tipo de coisa, e aliás nem sei porque estou explicando isso já que nenhum de vocês é burro) e parando pra olhar e entender qual foi o motivo pra essa decisão consciente existir, cheguei no segundo encontro com um inimigo invisível. Esse, por sua vez, foi catártico. Talvez meu momento favorito do jogo, mesmo não sendo “importante” pra sua “história”. Era só um, em uma sala espaçosa, com cacos de vidro e poças no chão. Você vai saber qual é: felizmente os inimigos invisíveis são esparsos o bastante pra não se tornarem chatos ou banais (meu medo inicial) e, por conseguinte, algo fácil de lembrar em retrospecto.
Os acontecimentos de Evil Within seguem um crescendo quase palpável, se transformando basicamente em um The Last of Us menos baixo e mais bateria. Eu adoro baixo, mas também gosto de bateria – e de vez em quando é bom nos depararmos com algo mais exagerado e ousado, sem medo do que seriam as noções externas. Talvez a metáfora certa seja “The Last of Us feito pela Platinum Games”.
Shinji Mikami soube o que estava fazendo e jogando-o logo em seguida de Resident Evil 4 eu pude constatar que na verdade não são jogos muito parecidos, embora claramente conectados. Mais de uma pessoa me disse que era “o verdadeiro Resident Evil 5” e visto que no 4 nós começamos em uma vila assustadora e algumas horas depois estamos fugindo de uma estátua gigante de um anão velho que acha que é o Napoleão logo antes de enfrentarmos padres portando bazucas, é realmente pra onde Resident Evil deveria ter ido em vez de se perder na própria masturbação-seguida-de-sono em uma cama de solteiro que sequer acomoda mais seus pés.
Em suma, The Evil Within não é assustador, mas é completamente maluco. É a antítese do receio que levou Bioshock Infinite a deixar bem claro mas bem claro MESMO que andar com a Elizabeth não era uma missão de escolta pois “gamers odeiam missões de escolta” – Evil Within, nesse caso, colocaria não apenas uma missão de escolta, mas te forçaria a usar dois controles ao mesmo tempo pra mover ambos os personagens e, se reclamasse muito, apareceria um terceiro.
The Evil Within está disponível para PC, Xbox One, Playstation 4, Playstation 3 e Xbox 360 pelo preço de sempre.
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