Pensem comigo:
Quando a gente entra em choque com a estética (seja qualquer uma: pintura, filme, jogo, música) em um nível mais primal, o que buscamos é a catarse – algo que nos leve para além daquilo ali, que nos faça esquecer que estamos numa cadeira ou fones de ouvido, e que nos faça fazer parte do que está acontecendo. Não digo isso no sentido de “imersão” ou “identificação”. Isso é uma maneira rasa de descrever as coisas. Fazermos parte de algo não quer dizer que estamos protagonizando aquele algo – de vez em quando é apenas estarmos acompanhando, mesmo, torcendo, gritando e tendo a impressão de que quem está lá nos ouviu e atingiu o objetivo – ou nos ouviu, não conseguiu e se sentiu ainda pior por decepcionar tanta gente. Embora acabemos confundindo essa catarse com um sentimento simples de euforia, ela pode ser qualquer reação emocional muito forte causada por aquilo que estamos acompanhando (claro, no contexto midiático de catarse).
Bloodborne se alimenta da nossa catarse porque ela é a única maneira de prosseguir com o jogo.
Explico: é um jogo que exige um nível de atenção emocional e mental muito grande. Ele precisa que o jogador esteja investido nele pra poder prosseguir. Ele precisa que o jogador se frustre e se imagine melhor do que aquilo, que tenha raiva, que memorize os mapas, que fique desesperado procurando um atalho. Por ser um videogame, no entanto, todos esses sentimentos de frustração por não conseguir passar um chefão ou por não conseguir matar todos os inimigos de um grupo de cinco antes deles nos matarem, serão direcionados a nós mesmos. De primeira até dá pra achar uma desculpa: “ah, essa câmera me atrapalhou”, “putz, não reconheceu meu último golpe”, mas a partir do momento que renascemos em uma lanterna com o intuito de tentarmos de novo e tentamos, rola uma admissão – mesmo que interna e silenciosa – de que a culpa foi nossa. Vamos fazer melhor dessa vez e aí quem sabe prosseguir e dar espaço pra essa culpa acontecer em um próximo chefe, um próximo caçador, um próximo grupo de inimigos.
Tim Rogers disse em um dos streams que eu gosto de acompanhar, enquanto ele estava ainda na primeira área, que o segredo desses jogos é que eles não acontecem enquanto o jogador está entediado. Expandindo esse pensamento: se você está entediado, passa a não prestar atenção no jogo. Não prestando atenção no jogo, passa a morrer de maneiras cada vez mais estúpidas, e aí o jogo não prossegue. Pode ver que qualquer um que chega ao final de um jogo desses acaba carregando memórias muito boas. Essa pessoa só conseguiu prosseguir enquanto estava animada, com raiva, ou com qualquer sentimento que não fosse a apatia perante o boneco morrendo lá na tela. Ela não estava entediada. O tédio é o contrário da catarse. Quem se entedia com o jogo não o joga – é diferente de alguns outros Certos Tipos de Jogos em que mesmo quando não estamos investindo absolutamente nada além de uma ou duas apertadas de botão, conseguimos chegar ao final e ficando no máximo com a impressão do “é, é legalzinho até”.
Isso até pode parecer a usual punheta em cima da dificuldade, mas não é não. É claro que é difícil – sem ser difícil não tem como transmitir esse nível de ligação através do combate – mas como já disse em outros textos, tal dificuldade é consequência e não o ponto de partida de como o jogo foi projetado.
A história também só acontece se a gente quiser. Prestar atenção no cenário, itens, personagens… Ler e buscar, não simplesmente assistir ela se desenrolar. Quanto mais você sabe dela, mais maluca ela parece. É uma maluquice associativa – tudo faz sentido, mas não é um negócio que se coloca em palavras. Quando você começa a entender o que acontece o louco é você. Tem até um negócio dentro do jogo pra isso: o Insight (que foi muito bem traduzido como “Discernimento” na versão em português, inclusive). Você recebe Discernimento quando vê chefões pela primeira vez, quando os mata, quando ajuda alguém a mata-los no modo cooperativo, ao olhar certos eventos do jogo se desenrolarem e ao usar um item chamado “Madman’s Knowledge”, que é literalmente um crânio quebrado na parte de cima após receber uma verdade insana o bastante pra explodir sua cabeça. Quanto mais Discernimento você tem, mais o jogo muda – coisas que não aconteciam antes passam a acontecer, os inimigos ficam mais difíceis, algumas linhas de diálogo que antes eram apenas grunhidos começam a fazer sentido.
Quanto mais conseguir enxergar a “Verdade” de como é aquele mundo, maior é a chance de sentir que talvez não esteja preparado pra isso, já que ele fica mais difícil. Então dá pra gastar esse Discernimento em maneiras que tornam o jogo mais fácil: comprar itens ou chamando alguém pra te ajudar. Dá pra você buscar a realidade da situação se dedicando mais e tendo que arcar com a responsabilidade (inimigos mais difíceis e pouca resistência a alguns status, por exemplo) ou pode continuar conformado na sua situação de leigo e jogar uma versão um pouco mais fácil do mundo. A quantidade desse item em determinadas situações não é scriptada, é orgânica. Dá pra passar o jogo todo com o contador de Discernimento baixo se precisar de muita ajuda ou quiser comprar muitos dos itens especiais. Mas pra ter ele alto, precisa de dedicação: ajudar os outros, contornar as situações você mesmo, explorar pra achar mais Madman’s Knowledge, enfrentar inimigos mais difíceis, etc. Quanto mais você se dedica, mais o jogo te recompensa – e talvez essa recompensa seja grande demais pra você, pro seu personagem, pra cidade de Yharnam. Talvez seja melhor sacrificar um pouco de conhecimento real em prol do pragmatismo, facilidade de lidar com o mundo, mesmo que seja um mundo maquiado, escondendo a Verdade que o assola e controla. Isso varia de jogador pra jogador. O jogo comporta os dois tipos – mas diz, literalmente, que “evolução sem coragem será a ruína da raça humana.”
Por falar em coragem, quase não tem escudo no jogo. Isso todo mundo já sabe – afinal, trocar escudo por armas de fogo é um dos maiores atrativos que usaram pra vender pro pessoal mais dedicado. Até onde eu saiba, tem um escudo só. Um escudinho xexelento de madeira que não serve pra muita coisa. A descrição dele diz que defesa é legal, desde que não endosse passividade. Nas primeiras áreas do jogo, um inimigo em específico usa esse escudo. Ele sempre anda em grupos, é covarde, não te ataca até que você mate o resto da horda e fica só se escondendo atrás do escudo. Quando vê que não tem mais jeito e é o único que sobrou, vem pra cima: de um modo todo desajeitado, tentando atacar com a tocha. Morre rapidinho. É engraçado, é até uma piadinha meio maldosa, mas tá lá e contribui pro mundo do jogo, pra tudo o que ele tá dizendo e mostrando.
Outra coisa que contribui pra essas sensações é o tal do level design. Nem tem muito como falar sobre ele sem um vídeo mostrando tudo, mas se tem alguma coisa além de Super Metroid que alcançou o estado-da-arte do modo de projetar fases é isso aqui. Inúmeras vezes eu me perdi, até pensei em simplesmente usar um item pra voltar pra lâmpada (o ponto em que você reaparece quando morre) mas resolvi continuar explorando e de repente me deparei com algum atalho pra uma área que já era familiar. O jogo te induz a explorar a primeira vez pois quanto mais terreno você cobre, menos terreno terá que cobrir nas inevitáveis repetições, já que encontrará atalhos e outros caminhos mais eficientes. A sua stamina – que rege tudo do jogo, desde desviar até atacar – é gasta muito mais lentamente quando você corre do que quando sai pulando por aí, justamente pra, caso você consiga masterizar uma área, conseguir correr por ela inteira em vez de ficar parando pra enfrentar os mesmos bichos. Tudo é interligado, quase tudo tem ligações com os outros lugares – desde que faça sentido geograficamente (cof, cof). E cada vez que você puxa uma alavanca que faz aparecer um elevador do fim da área que te leva até aquela lanterna do começo dela, que você viu há trinta minutos atrás, a sensação de alívio e de descoberta é fantástica. Quanto mais você explora, mais é recompensado. Se tiver medo, vai usar o mesmo caminho de cinco minutos até o chefão toda vez que morrer, dando murro em ponta de faca. Se explorar a área inteira, porém, encontra um atalho que te leva até tal chefe em quinze segundos.
Os chefes estão rápidos, também. É menos uma batalha de atrito, planejamento, lembrar de padrões e mais de conseguir lidar com o inesperado e torcer pra sobreviver até a próxima oportunidade de ataque. Tem a coisa de recuperar um pouco da vida que se perde em um ataque se consequir golpear de volta em seguida. Isso te incentiva a ser agressivo de volta, não ficar apenas apanhando recuado. Sua vida se recupera, a do chefe não (na maioria das vezes, ao menos), então bater é algo muito mais palpável do que se defender. Alguns chefes são suscetíveis ao “ataque visceral”, também – que funciona quando você apara o golpe do oponente, atirando nele no meio de um ataque. Ele fica vulnerável a esse ataque visceral, que dá bastante dano, geralmente o derruba no chão pra gente poder se recompor depois e, dependendo dos seus equipamentos, pode também recuperar um tanto da sua vida.
Vê como tudo se liga? A catarse, a coragem, a evolução, a agressividade, o mundo ser mais do que aparenta, o level design se auto complementar e o jogo só prosseguir quando conseguimos, nós mesmos, colocar isso tudo em perspectiva. Quando conseguimos, nós, jogadores, evoluir – já que os equipamentos e números que ditam o quanto de dano nós podemos dar e receber importa muito menos do que nossa capacidade mecânica de controlar o boneco – e entrar no jogo, entender tudo aquilo ali e alcançar um estado mental de atenção bastante exclusivo. É raro encontrar um jogo que tenha tanta coesão em todos os seus sistemas, mensagens, mecânicas e fases, mas Bloodborne é um desses. É algo que contribui tanto pra mídia quanto pra pessoa que o joga ou assiste, se assim deixarmos e acatarmos o que ele nos propõe. É um jogo que eu fico feliz que exista – independentemente de qualquer briga por exclusivos, consoles, fanboys – e fico feliz que esteja indo bem o bastante pra financiar outros jogos do tipo.
É um jogo denso, difícil de se acostumar, mas a maioria das coisas boas são assim. Elas exigem que a gente melhore internamente antes de termos acesso completo a elas; a ter paciência, coragem, curiosidade e apreço pelo que estamos recebendo e pelas pessoas que trabalharam para nos oferecer aquilo. Exigir algo de alguém é, antes de tudo, um exercício de respeito – afinal, você confia, portanto, que as pessoas sejam capazes de fazer aquilo que é exigido, e que se ainda não são, melhorarão até ser. E quando ela consegue matar aquele chefão após tantas tentativas foi, no fim das contas, graças a você, por ter colocado aquele chefe lá e dito “olha, dá sim pra matar isso aqui se você se esforçar”. E aí ela saiu daquela situação melhor que entrou – melhor em apertar botões e, principalmente, melhor em conseguir pensar, como um humano, no motivo pela qual ela gosta tanto de apertar aqueles botões, e em como ela vai agir perante os outros quando não tem mais nenhum botão pra se apertar.
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