Steven Universe é, em sua essência, um desenho pra crianças pré-adolescentes. Isso é algo que fica claro em suas temáticas e abordagens em primeiro plano em quase todos seus episódios. Mas também é a refinação de algo que vem sendo elaborado desde a época de Powerpuff Girls, e ultimamente passou por um grande laboratório chamado Adventure Time onde esse conceito evoluiu demais. Essa ideia consiste em colocar outra temática por trás de tudo, para outro tipo de público, sem deixar o de lado o público que deveria ser o primário.
Na história temos as aventuras de um moleque gordinho que mora com outras três garotas, formando um grupo chamado Crystal Gems. Cada uma delas representa o poder de uma pedra (Garnet, Amethyst, Pearl), enquanto o Steven carrega uma pedra no umbigo que herdou da sua mãe. A maioria do foco das aventuras nem está nas batalhas ou perigos que as Crystal Gems enfrentam, mas no dia a dia do menino. Todo o resto, que forma uma trama mais complicada, fica nesse segundo plano temático que mencionei antes.
Mas antes de debater como a série faz isso, é bom deixar claro que ela só consegue atingir suas metas por executar bem demais tudo que se propõe a fazer. Por exemplo: quando fiquei sabendo que era a criadora da série, Rebecca Sugar, a responsável por alguns dos episódios musicais mais famosos de Adventure Time, essa informação não me veio com surpresa nenhuma. A musicalidade flui na série desde seu piloto (onde a música tema da série é criada casualmente pelo protagonista), até no episódio de final de temporada, em um dos momentos mais tensos.
Também é bom notar como a criadora, em uma época que se debate tanto sobre personagens femininos, consegue criar exemplares tão únicos de maneira tão natural, até mesmo passando certa mensagem subliminar. No piloto um amigo de Steven, Lars, comenta que precisa ser uma gostosa pra ser uma Crystal Gem, mas todas as três que conhecemos logo de cara estão longe de terem o padrão de beleza comum e batido que rola por ai. Amethyst é gordinha e baixinha, Pearl é magrela e tem o nariz grande, Garnet é masculina e taciturna. Mas nunca nenhuma delas vê sua aparência como um problema, nem nenhuma outra pessoa de fora. Elas são tratadas como exemplos de formosura. Pelo menos uma das mensagens que vem com o design dessas personagens fica clara: a beleza não é um padrão.
O mesmo pode se estender para seu lado pessoal que mostra praticamente o mesmo. Amethyst é comilona, afrontadora e sedutora; Pearl é insegura, recatada e esperançosa; Garnet é misteriosa, fechada e confiante. Cada uma com suas personalidades distintas, e a criadora consegue demonstrar isso até na maneira como elas dançam. Sempre deixando claro de maneira tênue que não existe uma polaridade ou certo e errado nesses pontos, são apenas peculiaridades de cada uma.
Eu citei esses exemplos, junto com o da música, para mostrar que grande parte da temática precisa ser digerida, ficando em um segundo plano completamente não intrusivo. A maioria das mensagens e dicas não é esfregada na sua cara, por não ser uma necessidade para esse público primário. O bacana é que, na maioria das vezes, quem faz essa interface é exatamente o protagonista.
Com sua ingenuidade e inocência, ele percebe o mundo ao seu redor de outro modo, dando importância para outras coisas. O público mais jovem, ou aqueles que querem apenas curtir uma risada desapegada, acompanha o menino e pode muito bem curtir cada episódio só se divertindo com suas caras e bocas e com suas trapalhadas.
Mas aqui e ali eles colocam uma frase, uma imagem, que pode capturar a atenção de alguém que está olhando para esse segundo plano. E praticamente nunca essas frases são sem propósito. Esses pequenos pontos dão dicas da relação interpessoal entre os personagens, de dilemas e medos enfrentados por eles, e de problemas do passado. Todo o resto do público tem as Crystal Gems para se apegar e leva-los para esse outro lado.
Essa mistura é tão interessante, que existem episódios mais no final da temporada, onde esses dois planos se misturam cada vez mais, aonde o final do mesmo chega a ser alegre e depressivo ao mesmo tempo. Enquanto Steven está feliz por ter conseguido resolver seu dilema moleque e episódico, as Gems claramente estão com o cu na mão, pois pra elas o problema vai além disso. Novamente, nada disso é intrusivo, mesmo quando as duas realidades ocupam o mesmo frame do desenho.
É claro que, para se criar uma narrativa concisa, mesmo que em segundo plano, existem episódios que são mais focados nesse que a princípio era um simples plano de fundo. Mas mesmo assim é interessante notar como eles ainda assim conseguem usar o Steven para amenizar a situação, e mostrar como ele encara de maneira suave e descompromissada até mesmo os momentos mais tensos, onde ele chega até passar um pouco para o lado sério da equação.
Fora os quatro, existem outra gama de personagens, todos muito bem elaborados e com personalidades únicas. Alguns deles, como é o caso do pai de Steven, Greg Universe, acaba servindo de elemento nas duas partes da trama. O careca cabeludo, que mora em uma van e leva uma eterna vida praieira, faz ponta nos dois lados da trama. Por vezes ele ajuda seu filho nas suas baboseiras cômicas e sem sentido, e em outras o vemos servindo como peça para entendermos melhor coisas que aconteceram antes de Steven nascer.
Para encerrar, é importante notar que essa é só a primeira temporada e, embora ela seja maior do que outros desenhos do tipo, nós encontramos aqui uma qualidade e elaboração que não é comum assim logo de cara. Seja em animações ou séries, alguns elementos levam certo tempo pra acelerar, e a maioria das coisas em Steven Universe parece natural logo de cara.
É óbvio que Rebecca aprendeu muito de todos aqueles que estão criando e experimentando ao seu lado, seja na rede dela ou em outras, mas a partir de agora sua série também é um exemplo a ser seguido. Que esse começo da série seja apenas um fundamento, e desejo que tanto a criadora como sua criação ainda tenham muito a contribuir nesse ramo.