Qualé a desse tal de… Undertale

Eu lembro que quando eu era pequeno, eu tinha a vontade de fazer um RPG (nesses RPG Maker mesmo, que fosse) onde você tivesse dezenas de escolhas de diálogos e cada um desses diálogos levasse a resoluções e destinos completamente diferentes. Um jogo que lembrasse das minhas escolhas. Obviamente, isso era um fruto da minha inocência sobre o quão puxado e difícil pode ser o processo de desenvolvimento de jogos; na minha cabeça ter um jogo com centenas de caminhos diferentes seria o máximo, mas eu não contabilizava o tanto de tempo que isso ia levar para fazer algo que seria visto por uma absoluta minoria dos jogadores…

O bom é que, hoje, existem pessoas que, diferente de mim, seguiram o sonho de fazer o RPG que elas sonhavam, seja lá qual ele fosse. E com o surgir de softwares que te permitem fazer um jogo inteiro sem entender necas de programação e o advento do crowdfunding, a possibilidade de se fazer um jogo mudou muito de uns anos pra cá; ao ponto de uma só pessoa ou um time muito pequeno conseguir fazer um jogo inteiro, desde que tenham persistência pra isso.

E quando você tem pessoas que antes não poderiam fazer um jogo e agora podem, pode terminar com resultados bem diferentes do comum.

Deixa eu enfatizar de novo: bem diferentes.

Levou aproximadamente sete minutos para eu me apaixonar por Undertale. Com vinte, eu já cogitava que ele seria o meu jogo do ano.

Quem já leu algum texto meu aqui no site sabe que eu sou um fã doente da série Mother. Quando leio alguém falando que um jogo “é tipo EarthBound” eu tenho calafrios brutais, porque em geral a maioria desses jogos não tem porra nenhuma a ver com EarthBound. Me faz eu pensar que o interlocutor nunca jogou EarthBound e essa provavelmente é a única série de joguinhos virtuais que eu me importo o suficiente a ponto de ficar ofendido sempre que essa comparação esdrúxula aparece no meu monitor.

(Em tempo: já perceberam como quase todo jogo independente hoje em dia “é tipo EarthBound” ou “é tipo Dark Souls”? Talvez o reflexo de você ter pessoas apaixonadas pelo hobby produzindo algo sem ter a pressão de investidores nas costas.)

Então, qual não foi a minha surpresa ao começar o jogo e ver que… de fato, me lembrava EarthBound. Na primeira canção que toca durante na introdução, o negócio tava me lembrando EarthBound (ou, mais especificamente, Mother – e, mais especificamente ainda, a sua introdução). No primeiro diálogo com o primeiro NPC do jogo o negócio tava me lembrando EarthBound.

Cacete. Eu nem esperei o diálogo terminar. Fechei o jogo (isso é uma coisa minha, eu fecho muito os jogos – é muito raro eu passar mais de 10, 15 minutos em uma sessão) e fui correndo comentar com o Tuba sobre a parada. Minutos depois, voltei ao jogo.

Ué. Notei algo estranho.

Eu tenho certeza que a tela de opções não era assim antes. Eu tenho certeza que não tinha som, eu tenho certeza que essa opção que apareceu agora não exista aqui. Será que ela muda aleatoriamente? Voltei uma, duas vezes, e nada. Tinha mudado de vez.

Enfim.

Botei meu nome e comecei um novo arquivo. Falei com o primeiro NPC. O diálogo foi diferente.

“Por que você fez eu me apresentar de novo? Não sabe que é rude fingir que não reconhece as pessoas?”

Eu tinha absoluta certeza que eu não tinha salvo o jogo. Como poderia? Eu nem tinha visto um save point! Tinha recomeçado do zero. Mas ainda assim, lá estava o jogo dizendo na minha cara que sabia que não era a primeira vez que eu estava ali. Ele lembrava. De alguma forma, ele lembrava.

Nem deu tempo de ficar surpreso. Meio minuto depois o jogo já estaria me surpreendendo novamente.

Undertale é um jogo desenvolvido por Toby Fox, um compositor responsável pela música em Homestuck (que eu não tenho muita certeza do que é, exatamente – vá perguntar ao Luiggi). Na história do jogo, é contado que humanos e monstros viviam na terra, até que rolou uma guerra onde os humanos foram os vencedores e os monstros foram exilados para as ruínas no subterrâneo da terra. Anos depois, em 201X, uma criança está explorando a base de Mt. Ebott, uma montanha cujas lendas dizem que quem sobe jamais retorna. A criança (que é você, obviamente) se descuida, cai em um buraco, e agora deve procurar um caminho para voltar à superfície.

Undertale é um jogo que “se vende” pela premissa de ser um RPG onde você não precisa matar ninguém. Parece baboseira do tipo que se usava pra estampar a capa de jogos, mas isso de fato descreve um componente crucial do jogo: você realmente não precisa sair atacando ninguém e todos os conflitos podem ser resolvidos por outra abordagem a partir de um comando chamado “Agir”. O comando Agir é dependente do adversário que você está enfrentando, então cada vez é algo diferente: você pode fazer carinho em um cachorro, dar palavras motivacionais a um fantasma deprimido ou flertar com um esqueleto, só pra dar alguns exemplos. À medida que você conquista a confiança ou respeito de um inimigo, a opção “Perdoar” se torna disponível e o conflito se resolve. Você não ganha nenhuma experiência, ganha algum dinheiro, e fim de batalha.

Parece estranho, não é mesmo? O que parece uma referência ao esquisitíssimo comando conversar de Shin Megami Tensei aqui é essencialmente a mecânica fundamental de resolução pra quase tudo, e felizmente faz muito mais sentido do que fazia em SMT. Cada conflito se torna um mini-puzzle onde você deve desvendar qual a melhor tomada de ações a seguir para solucionar. É um sistema diferente e muito mais interessante do que simplesmente descobrir se tal inimigo é fraco contra água ou fogo, por exemplo. Não que isso faça as batalhas serem sempre moleza; os inimigos continuarão atacando, e o sistema de defesa é sensacional: você controla um pequeno coraçãozinho (que representa a sua alma) em um retângulo e deve desviar dos diferentes projéteis ou objetos que aparecerem nele, quase como um shooter de navinha das antigas. É um conceito tão diferente e divertido que as batalhas nunca se tornam entediantes.

“Mas quer dizer que eu preciso sair perdoando todo mundo?”

Claro que não! Se você quiser dar uma de genocida e sair trucidando todo mundo na sua frente, à vontade. Você não precisa, mas você pode; a escolha é sua. Só não ache que ele vai esquecer disso…

Passar tanto tempo falando do sistema de batalha dá a impressão de que esse é o ponto-chave de Undertale, quando no fim não passa de mais uma de suas mecânicas. A grande força de Undertale, de fato, é seu poder de subversão: de RPGs e seus clichês, de mecânicas de jogo, de progressão, de quarta parede, de basicamente TUDO. É estranho e difícil tentar explicar sem estragar as surpresas, mas o fato é que Undertale é um jogo tão diferente do convencional pois ele basicamente pega todas as suas expectativas sobre como um jogo do gênero deveria funcionar e pôe elas de ponta-cabeça. É surpreendente e inovador, e se você for alguém o mínimo familiarizado com o gênero, vai se ver rindo em voz alta sobre a capacidade do jogo de surpreender você a cada esquina.

O estilo visual e auditivo do jogo não tenta se ater ao que era padrão de determinada geração, como fizeram Shovel Knight ou Odallus, por exemplo. O mundo principal parece um jogo de NES com cores de Snes, a tela de batalha parece saída de RPGs antigos de computadores a lá Wizardry, os retratos do personagens alternam entre pixel art lindíssima e bonecos tortos no Paint. É tudo bem variado, mas não te causa uma sensação de estranheza a ponto de se assemelhar a um repúdio. A trilha sonora, em si, é espetacular: não vão ser poucas as melodias que vão continuar ecoando na sua cabeça mesmo após terminar a jornada.

Outro ponto que merece bastante destaque é a qualidade da escrita. Esse é um jogo que, como Mother, vale a pena ler cada detalhe e falar com cada personagem, não apenas por ser interessante mas por ser divertidíssimo. Os diálogos do jogo em certos momentos são dotados de uma sensibilidade tão grande que é absolutamente injusto comparar com a média dos RPGs disponíveis. Necessidades e sentimentos dos personagens são expressos através de detalhes por suas ações, mesmo que tais ações em si sejam exageradas. Personagens contam mais de suas histórias pessoais através de atitudes do que por palavras em si. Monstros são mais dotados de humanidade que os próprios humanos. E quando não é sentimental, o jogo consegue ser completamente hilário – sério, são tantas situações genuinamente engraçadas, uma após a outra, que eu perdi a conta de quantas vezes ri em voz alta ou parava o jogo simplesmente para gargalhar. O humor aqui não é simplesmente um fator anexo para agregar valor ao jogo – é parte integrante dele, visto a sua correlação com a capacidade do jogo em constantemente se subverter, apresentar algo novo e surpreender o jogador.

Se fôssemos comparar a algo conhecido, de fato seria uma mistura de Mother 3 com WarioWare, mas não faz sentido se ater só a isso. Enquanto a graça de EarthBound vem de a de ser um jogo que simula a nossa realidade porém subvertida, Undertale te conquista por ser um jogo que subverte a si mesmo. É uma coisa surreal que constantemente brinca com a sua mente e que merece ser experimentada por qualquer pessoa que se importe o mínimo que seja com videogames.

Foram tantos momentos que o jogo foi mais inteligente que eu que não consigo nem contar o número de vezes que eu fiquei simplesmente olhando para a tela, sorrindo, e pensando o quão genial era tudo aquilo. Momentos que ri, que sorri, que gritei, que xinguei, que fiquei maravilhado e que fiquei boquiaberto. Undertale é um jogo único, que te preenche com um sentimento de surpresa constante que, de fato, não tem comparável na mídia. Não é só um forte candidato a um dos melhores jogos do ano – é disparado uma das experiências mais interessantes, surpreendentes e surreais que eu já tive com videogames.

Pode acreditar: Undertale é brilhante. Brilhante, brilhante, brilhante, brilhante, brilhante.

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Undertale está disponível para PC via Steam.

Sobre

Rodrigo "Rod" é de Salvador, Bahia. Estuda psicologia, finge ser escritor, e acha que entende alguma coisa sobre game design.

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