Qual foi a desse tal de… To the Moon

  29/01/2016 - 15:07   review, To the Moon,  
 

Texto escrito pelo leitor Marcelo “CDX” e publicado originalmente no nosso fórum.

Lembro perfeitamente da primeira análise que escrevi. Foi em meados de 2005, no extinto fórum NGM. Foi de Sonic Adventure 2, meu jogo favorito até hoje. Eu era um moleque espinhento de 14 anos recém saído do Ensino Fundamental que até então só tinha escrito contos e poemas de garagem. Textos explicativos que serviam pra eu falar sobre por que gostava daquilo que gostava eram completamente alienígenas pra mim. No fim das contas a análise ficou um lixo (tanto que anos depois fiz outra do mesmo jogo), mas o que importa é que naquela época sites como o GAMESFODA e o Gameblast, que defendem que os jogos devem ser avaliados não por critérios objetivos mas sim pela experiência pessoal que proporcionam, eram simplesmente inconcebíveis. As análises que eu tinha pra me guiar eram as dos colegas de fórum que também se arriscavam a escrevê-las, do site Finalboss (perda inestimável, minha maior inspiração em assunto de análises) e, principalmente, das revistas de games. Nintendo World e EGM Brasil, sobretudo. São exemplos nacionais, mas que bebiam diretamente da fonte de sites e revistas estrangeiras, então isso aí era o quadro geral.

Jogos independentes praticamente não tinham espaço naqueles tempos. Todos os sites brasileiros sobre games que pipocavam na rede (inclusive o próprio site da NGM, que estava estreando) eram feitos por moleques espinhentos como eu, que também tentavam seguir o modelo, com variações aqui e acolá. Esse modelo era falar sobre aspetos do jogo como gráficos, som, jogabilidade, enredo (quando importava), fator diversão, fator replay etc de modo separado (às vezes até dando notas individuais pra cada aspecto) e por fim fazer um resuminho de como essas coisas se integravam no conjunto da obra, e quase sempre dar uma nota geral. Tinham uns que ousavam em algumas coisas (tipo eu e mais uns gatos pingados que fazíamos análise sem dar nota) mas quem escrevia sobre Videogame na época e fugia muito desse modelo estava condenado a ser olhado torto, como um amador que claramente não entendia o que tava fazendo ou do que tava falando. Mas com o tempo novos sites mais descolados foram surgindo, e com eles novas maneiras de se escrever sobre jogos, além do quê os indies foram ganhando espaço no mercado e na imprensa. Mais importante ainda: começaram a aparecer jogos que mostravam que aquele modelo de análise era claramente limitado, e não dava conta de mostrar o que esses novos jogos eram.

To The Moon é um desses jogos.

E veja bem, isso não quer dizer que tenha algo de errado em falar de jogabilidade e esse tipo de coisa numa análise. Eu faço isso até hoje, e acho importante. Mas para certos jogos isso não é suficiente, e às vezes (como agora) nem mesmo é a questão principal. To The Moon tem gráficos, som e jogabilidade competentes e a parte artística é fenomenal (ele te mostra o tempo todo que foi feito com um carinho e esmero muito acima de quase todas as produções milionárias por aí), mas com limitações óbvias na parte técnica, devido ao baixo orçamento do projeto. Mas no fim nenhuma dessas limitações técnicas importa muito, pois To The Moon jamais poderia ser analisado de forma digna pelo texto padrão do começo dos anos 2000, porque ele não é um jogo igual aos que eram lançados e analisados no começo dos anos 2000. Muito pelo contrário, ele é diferente de qualquer outro que eu já tenha jogado, em muitos sentidos. E isso é maravilhoso.

Pra começar, To The Moon é completamente voltado para seu enredo. Isso não seria tão singular assim, se não fosse o fato de que quando eu digo ‘completamente’, é completamente mesmo. Ele não liga a mínima para mecânicas de jogo, exceto em saber como elas podem ser usadas para contar a história. É um adventure feito no RPG Maker (daí as limitações técnicas) que consiste apenas em andar pelos cenários, conversar com as pessoas, e resolver puzzles. Mas não como costumam ser os puzzles de adventures, complexos e super elaborados, que te obrigam a passar horas juntando as peças do quebra-cabeças. São puzzles simples, feitos exclusivamente com o objetivo de narrativa. Eles servem para isso, e apenas para isso. Os itens coletados ao longo da partida não têm nenhuma utilidade prática que não seja prosseguir com a história (leve tal coisa para tal pessoa pro jogo continuar) e, fora isso, você os pega apenas para poder ler a descrição deles. E porque, no contexto em que você os pegou, fazia sentido que você os pegasse. Na maioria das vezes sequer chegam a ser itens, são apenas anotações feitas pelos personagens para você poder ler quando quiser, tal é o foco que o jogo dá ao enredo. Isso é ruim? Em qualquer outro jogo talvez fosse, mas não aqui. Aqui, ruim seria se fosse diferente. Porque a história que To The Moon nos conta é, com muita folga, uma das mais fodas que você já viu.

Mas o que há de mais diferente (e talvez de mais brilhante) em To The Moon é ser um jogo onde, pela primeira vez na minha trajetória gamística, eu não controlo o protagonista. Como diriam os dicionários e livros de português, protagonista é o personagem que ‘desempenha ou ocupa o primeiro lugar’ em uma obra, aquele ‘sobre o qual se conta uma história’. Os protagonistas de Titanic são o casal Rose e Jack, o de 007 é James Bond e o de Harry Potter é, bem, Harry. Em To The Moon você controla Eva Rosalene e Neil Watts, profissionais da Sigmund Corp., mas o protagonista é John Wyles. É a história dele que está sendo contada. É ele que importa, e Eva e Neil são meros coadjuvantes. Johnny, como gosta de ser chamado, é um velho moribundo que está inconsciente e à beira da morte. Pouco antes de morrer, ele contrata os serviços da Sigmund, uma empresa especializada em alterar a memória das pessoas.

Ao contrário do que pode parecer pela expressão ‘alterar memória’, o que a Sigmund faz não é simplesmente apagar lembranças das pessoas, como em Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças. Ao contrário: ela implanta falsas lembranças, e é contratada por pessoas como Johnny para fazer com que elas morram acreditando terem vivido uma vida diferente. Se eu quisesse morrer acreditando que fui campeão mundial de Smash Bros, chamaria a Sigmund. Johnny chamou a Sigmund para morrer acreditando que foi à lua. Mas ele não sabe por quê. Ele não consegue dizer quais os seus motivos para ter esse desejo, nem como ele surgiu. Ele só sabe que quer ter essa lembrança.

E aqui temos um problema, pois a tecnologia da Sigmund só pode criar memórias falsas a partir das memórias já existentes, através de uma sucessão coerente de acontecimentos. Se quiserem atender ao desejo do moribundo, Neil e Eva precisam saber como surgiu essa vontade em Johnny para então fazê-lo acreditar que, em algum momento, sua vida tomou outro rumo. E que nesse outro rumo, em vez de ele ter chegado onde chegou, ele chegou na lua. Dito isso, eles mergulham nas memórias do velho em busca dessa origem, de trás pra frente. E assim vemos Johnny colecionando coelhos de origami, Johnny visitando o túmulo da esposa, Johnny tocando para a esposa doente uma linda música de amor que compôs para ela no piano, Johnny construindo a casa onde mora, Johnny se casando com River, e daí por diante até a adolescência e infância de Johnny.

Toda a história de To The Moon gira em torno do que existe entre Johnny e River, de uma relação que nos parece assombrosamente real e crível: seus problemas, seus medos, suas alegrias, seus momentos bons e ruins. A devoção que marido e esposa cultivam um pelo outro é comovente desde o início, e ganha proporções inimagináveis na segunda metade do jogo. Nós somos os estranhos, os alheios, os intrusos em meio à história dos dois. E tudo o que presenciamos (às vezes quase com vergonha da nossa falta de tato em ter que presenciar certos momentos do casal, pois fomos contratados pra isso) é só porque precisamos descobrir o motivo de Johnny querer morrer acreditando que viajou até a lua. Para, a partir disso, realizarmos esse desejo.

E assim uma coisa leva à outra. Um coelho de origami amarelo e azul que foi guardado com carinho leva ao guarda-chuva usado para visitar a lápide de River em noite de chuva, que por sua vez leva a um ornitorrinco de pelúcia dentro de um farol. Cada passo que Neil e Eva dão um pouco mais para o passado é através de pequenos objetos como esses, os chamados mementos, que ligam um ponto na linha do tempo de Johnny ao outro. Quase todos os puzzles do jogo são encontrar em cada recorte temporal cinco lembranças espalhadas pelo cenário (que podem ser tanto outros pequenos objetos tal qual os mementos, quanto conversas ou cenas que o casal vive) relacionadas àquele recorte específico e depois ativar o memento, o que significa resolver junto a ele um quebra-cabeça simples.

E conforme vamos resolvendo os puzzles, encontramos mais perguntas do que respostas. O que aconteceu entre os dois no passado? De onde vêm todos os coelhos de origami, e o que aquele que é azul e amarelo tem de especial? Por que River, que parece sempre tão distraída e avoada, guarda com tanto zelo um ornitorrinco de pelúcia? Por que ela e Johnny gostam tanto daquele farol, a ponto de quererem construir uma casa na colina junto a ele? E sobretudo, DE ONDE CARGAS D’ÁGUA veio essa vontade de morrer acreditando que foi à lua, sendo que aparentemente nada na história de Johnny tem qualquer coisa a ver com isso, já que ele teve uma vida comum e feliz ao lado da mulher que ama?

As questões que To The Moon nos traz, só jogando para compreender. Nem todas as respostas vão ser simples, e algumas perguntas sequer poderão ser respondidas ao chegarmos na tela de créditos. São questões para levarmos conosco para além do jogo. É fácil descobrir por que Johnny queria ir à lua depois de zerar essa obra de arte disfarçada de Videogame, mas é difícil compreender de onde ele e sua esposa tiram forças para amar um ao outro de forma tão pura e intensa, é difícil entender como que porra nenhuma do que acontece na vida dos dois pode quebrar isso. Nem as brigas de casal, nem os problemas financeiros, nem a morte, nem coisas muito piores. Levar Johnny à lua não é difícil por exigir habilidade com os botões ou uma capacidade enorme de raciocínio. É difícil porque, frente a tudo o que acontece no jogo, parece uma questão de menor importância. E quando descobrimos o quanto estávamos enganados nesse sentido, passa a ser difícil por ser uma decisão difícil, veja só, porque é difícil reconhecer a nossa insignificância em meio a tudo isso e não podermos fazer nada. Podemos até ter sucesso, mas o máximo de sucesso que vamos conseguir é fazer um velho viúvo e moribundo, que nunca nos viu na vida, morrer acreditando que foi à lua. É trágico até não poder mais, mas é a nossa missão. E se ao final de tudo escorrer uma lágrima, é sinal que fomos dignos dela.

Lembrando que dá pra comprar o jogo no Steam, no GOG e na Humble Store, é barato e tem tradução oficial pro português.

Marcelo “CDX” é um viciado assumido em Escrita, Geografia, Educação, Videogame. Acha jogar Sonic e fazer trilha na floresta mais maneiro que ovo de Páscoa. Publica texto sobre temas variados em seu blog Anotações de café da manhã.

Sobre

Esse texto foi escrito por um convidado para um post especial aqui nessa maloca.
  • Não é raro eu ler sobre To The Moon, lembrar do jogo e ficar com os olhos marejados. Mas esse texto aqui me destruiu. Muito evocativo, diria sublime. Ótima análise de um ótimo título.

    • CDX

      Uau, obrigado. XD

      Escrevi de coração. ^.^

  • CDX

    Passando mesmo só pra agradecer vocês estarem publicando. =)

  • Excelente análise. Esse tipo de jogo só poderia ser analisado dessa forma mesmo. Esse foi um dos jogos mais bonitos que já joguei. O seu sentimento final, da nossa insignificância diante da situação do jogo, é o mesmo que tive.

    • CDX

      Opa, valeu os elogios. ^.^

  • Tiago Miguel

    Peguei esse jogo e zerei ele no mesmo dia porque eu fiquei tão envolvido naquela história que só consegui parar quando o jogo terminou.

Visit the best review site wbetting.co.uk for William Hill site.