Qualé a desse tal de… Dark Souls III

Dessa vez todo mundo já sabe o que esperar e onde procurar – no momento que o jogo foi lançado no Japão começaram a bater em todas as paredes procurando passagens secretas, e nas paredes atrás das passagens secretas, nos baús, e tentar equipar as armas na mão esquerda. Todos já sabem que se a gente se importa com o que está acontecendo (e com o que pode acontecer), nossas respostas estarão nas descrições dos itens e no lugar onde os encontramos. Ninguém mais se engana: temos que ler as almas dos chefes antes de forjar equipamentos com elas, e depois ler de novo, pois ela mudará dependendo de sua forma. Sentar em um bonfire e abrir o menu de itens pra ler tudo numa sessão relaxante dessa vez é menos espontâneo e mais “parte do jogo” pra muitas pessoas, embora tenha toda uma área do mapa dedicada só pra sentarmos no bonfire cercados de pessoas relativamente amigáveis e abrasivas, familiares o bastante pro fato desse lugar ser desconectado do mundo realmente se parecer com um lar.

Seria um erro tentar alcançar de novo a “mágica do descobrimento” nesse jogo. O ato de esconder coisas vem tendo retornos decrescentes pois a internet só permite o mistério até certo ponto.  Ainda existem segredos e paredes ilusórias, mas nenhuma delas tenta nos surpreender da mesma maneira com coisas novas. Seria impossível. As surpresas dessa vez aparecem quando olhamos pra trás.

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E quando olhamos pra trás percebemos que a decadência da Era do Fogo era algo, em primeiro momento, físico: as pessoas ficam feias, perdem a força, a arquitetura começa a decair devido aos conflitos, grandes guerreiros de outras épocas perdem sua pompa ao tentar enfrentar isso, as capas rasgam, as armaduras enferrujam e queimam. A subsistência não é tão sutil. Almas são a moeda de troca, o sinal de poder, a humanidade é rara, literal e metaforicamente, e ela nos torna mais vulneráveis mesmo que, de maneira meio nostálgica e melancólica, nos faça imaginar como poderia ser aquilo antes do buraco em que tudo se encontra nesse momento. A decadência moral, porém, fica implícita – o problema de se tornar feio cada vez que se morre não é pela feitura em si, é pelo apodrecimento interno de cada um dos Hollows, que a cada morte e renascimento perde mais e mais de suas capacidades cognitivas e essência de ser, esquece quem era em vida, esquece seu propósito e usa as almas que consegue tirar de uma eventual presa apenas pra continuar vagando sem direção no mundo de Lordran, sem qualquer resquício civilizatório, nem em si, nem refletido nas poucas vizinhanças decrépitas que ainda tentam, em vão, manter algo minimamente organizado, lutando contra a ordem natural que dita que o fogo precisa estar aceso.

Dark Souls, de 2011, era sobre explorar esse reino, outrora tão grande e expansivo, agora apenas sombrio. O negócio é que, no fim das contas, quando se está mais acostumado com o jogo e podemos parar e olhar as coisas com algum conforto, ele se mostrava estranhamente acolhedor, mesmo com todas as coisas horríveis acontecendo. As grandes construções destruídas ainda tinham tijolos o bastante pra ser possível imaginar como elas seriam durante o pico de sua existência, com pessoas entrando e saindo, louvando seus deuses, se sentando nas mesas espalhadas, conversando entre si, como qualquer igreja no interior de São Paulo. Nada disso estava lá fisicamente – era apenas inferido, com um carinho bastante grande pra mostrar que embora tudo estivesse em ruínas, nada foi construído como essas ruínas. O modo como ele instigava a imaginação não era apenas estímulo pra se criar as próprias histórias, mas geralmente trazia junto a terceira parte do diálogo. Ao encontrar uma passagem secreta na mais bela das cidades construída para mostrar o poder dos deuses era fácil não se atentar ao fato de que tal item trazia um modificador de dano que o fazia mais forte contra esses deuses. Mas por quê tal item estava lá, guardado, então? Pois não haviam mais deuses na cidade, o jogo revela de maneira meio secreta. E assim se vai, costurando e respondendo coisas que, sendo franco, muita gente jamais perguntaria. No final enfrentávamos um senhor que refletia o próprio reino no fim: vazio, agindo por instinto, se segurando num desespero que tinha deixado qualquer chama de racionalidade há muito tempo atrás, tentando manter tudo do jeito que ele acreditava que devia ser. E podemos continuar seu legado, se quisermos. Mas só se quisermos.

Agora, em 2016, a decadência física não serve apenas pra sugerir que a decadência moral está presente, é muito mais sutil. Dessa vez não é apenas um reino, são cinco. Cinco reis que perderam tudo pra tentar segurar o mundo mais um pouco, ressuscitados pelo tocar de um sino, que também ressuscitou você, sem nome, amaldiçoado, que não serve pra acender o fogo e deve cumprir seu propósito de ir buscar esses antigos reis de volta pros seus tronos queimados. E todos eles passaram pela mesma coisa de Lordran – perderam o que fazia deles eles, se estabelecendo numa sociedade de Hollows como uma última esperança perante a inevitabilidade da chama apagar, a literal, que queima desde a Era do Fogo, e a metafórica, que representa cada um desses reis e cada um de seus cidadãos perdendo sua essência. A premissa de Dark Souls III é muito menos honrosa que a do primeiro, que te chamava de Chosen Undead (mesmo sendo mentira) e te colocando a responsabilidade de “suceder” Gwyn. Nesse não – te descrevem como lixo, e o trabalho será feito pelos outros. Você é só o catalisador de algo, não o centro desse algo, desde o começo. Não que você deva realmente se importar com isso – tem alguns porradeiros por aí e você pode acabar com eles, enquanto navega por mapas expansivos que circulam em si mesmos do jeito que você gostava lá no primeiro jogo. Dá pra ver as áreas que exploraremos depois olhando no horizonte e dá pra ver as que exploramos antes, também. Eu acho essa parte de olhar pra trás e ver o que exploramos a melhor de todas. O jogo não é só uma sucessão de estágios – tenta o máximo possível ser um mundo coerente em suas logísticas e vistas, descendo cada vez mais, mas sem nunca te deixar esquecer que tudo começou lá em cima, naquela muralha ali, naquele castelo que você não chegou a entrar, do lado daquele belo sol que te tenta desde os primeiros momentos.

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Assim como a própria distribuição de mapas que não te permite esquecer o que veio antes, o jogo não te deixa esquecer sua premissa, e os personagens não te deixam esquecer seu propósito, algo que em primeiro momento parece até meio condescendente e forçado, já que no fim das contas as ações ainda serão as mesmas: balançar sua espada por aí quando os inimigos estiverem de guarda baixa. Qual o motivo pra ficarem me lembrando que eu tenho que fazer isso? Acham que eu vou esquecer? É só isso o que os sistemas do jogo me permitem fazer, no fim das contas. Não posso tentar nada muito além. Fica a impressão de que tem algo de estranho ocorrendo ali, não no jogo, mas em seu mundo, no que ele te pede pra fazer. Será que é realmente tão óbvio assim? Isso vai depender de quem você encontra e de que eventos você assiste, mas há um ar de desconfiança permeando tudo que faz com que o conforto inicial seja perturbado, de que talvez não seja assim tão claro.

Buscar fazer sentido do que olhamos e não entendemos é parte do que torna a série tão única, e a variedade de lugares que a premissa nos permite visitar faz com que o tempo inteiro nossa cabeça tente conectar os pontos, até de modo meio histérico, antes que os primeiros vídeos pomposos do youtube leiam tópicos de discussão anônima sobre aquela área, já que é isso que fomos condicionados a fazer. Cada um dos Lords of Cinder tem uma dinâmica única em relação ao seu próprio reino e terreno, fazendo com que a coisa tenha menos cara de “ciclos” como Dark Souls II deixava a entender e seja muito mais característica pra si, em seus próprios méritos. O terceiro jogo não é tanto um poço de referências quanto uma carta de amor ao que já aconteceu, tendo um ar de “continuação do primeiro Dark Souls” muito maior que o segundo teve, dando a este a condição de “e se…”, segurando seus valores em uma estética paralela em relação ao resto da série. Esse se coloca como um refinamento do primeiro, trazendo acertos e erros do primeiro, falando sobre o primeiro, mas retendo suas próprias subversões e peculiaridades pra não parecer apenas derivativo. Algumas das coincidências parecem ser orgânicas, nascidas do próprio ar que ele perturba, enquanto algumas são projetadas pra serem o que são. Dark Souls III parece muito mais o resultado do amadurecimento de ideias dentro da cabeça de Hidetaka Miyazaki e sua equipe na FROM Software, que no primeiro jogo pareciam mais naturais mas também menos refinadas, justamente por isso. Esse tem menos das breguices charmosas que estavam no primeiro jogo, como alguns de seus ícones e partículas. É um jogo mais elegante, pro melhor e pro pior, mas não parece nem um pouco menos sincero por isso. A dança que o combate possibilita é a mesma, com números ligeiramente diferentes, mas com a aparência familiar o bastante para conseguir comportar qualquer pessoa que já apertou botões na vida, desde que essa pessoa esteja disposta a aprender junto com o jogo como ele se desdobra perante o próprio mundo.

Como Bloodborne, também, é um jogo sobre tirar as forças, a coragem e a iluminação de um mundo em inevitáveis ruínas, de superar os próprios erros pra merecer chegar no final e cumprir seus objetivos, tanto no nível narrativo “ceninha” quanto no nível narrativo de controle direto. As alegorias são tão óbvias quanto e muitas vezes permanecem as mesmas, mas sem jamais perderem seu valor – o poder vem dos outros, mas só cabe a nós escolher como usaremos tal poder que herdamos, e isso se reflete nas escolhas que fazemos tanto nos finais dos jogos quanto nas que fazemos ao termos que rolar pro lado direito ou esquerdo pra desviar do próximo ataque do chefão. Há sete anos poucos jogos conseguem trazer a sensação de superação nos próprios termos quanto esses, e continua tão forte aqui quanto era em 2009. Essa dependência de nós pras coisas acontecerem é um tanto óbvia, mas é cada vez mais importante. As coisas ali naquele(s) mundo(s) são reações diretas das nossas ações como jogador. Ele depende da gente pra continuar existindo, embora não dependesse pra existir em primeiro lugar. Essa troca de favores permanece única, mesmo com diversos clones tentando homenagear e buscar o mesmo mercado que esses jogos ocupam e sucedendo em níveis diferentes, nenhum deles conseguiu exatamente o aspecto mais importante.

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Dark Souls III nos agradece pelo tempo investido tanto nele quanto nos anteriores de diversas formas, mas nunca nos acuando pra isso. Ele exige o mérito da vitória e a troca de valores pra acontecer, como qualquer relação da história da humanidade, e jamais aceita que você dê menos que o seu melhor pra prosseguir – mas também reconhece que deve te recompensar no mesmo nível, mantendo a constância de que quaisquer dez minutos de folga que você tiver, seja pra tentar aquele chefão pela oitava vez, seja pra ler as descrições dos últimos itens que achou, também serão os melhores dez minutos que ele pode te oferecer. O quanto Dark Souls é “justo” não se refere apenas ao seu nível de dificuldade – se refere ao fato de que ele te dá exatamente o quanto recebe, e só pode ser apreciado assim, instigando que você siga a mesma simbologia do seu personagem, que representa as cinzas buscando brasas, sem nunca dizer isso claramente, apenas te colocando nesse caminho, te puxando pela mão pra cumprir seu propósito, seja ele qual for.

Dark Souls III estará disponível para Windows, Playstation 4 e Xbox One a partir do dia 12 de Abril. Essa análise foi feita com base em uma cópia de PC liberada pela Bandai Namco Brasil.

Sobre

Guilherme Alves “Neozao” é game designer não-praticante, gosta de chá e de comer sobremesa com a menor colher possível.
  • Felippe Martins

    Eu ejaculei lendo essa resenha. Obrigado Neozão.

  • Pingback: Review | Dark Souls 3 e as contradições da From Software » Jovem Nerd()

  • Santiago Villas

    :’)

  • mateus

    mano
    que
    texto
    espetacular

  • Lica Santana

    Uma das melhores análises que já li na vida! *-* Muito obrigada mesmo por isso!

  • Guilherme

    Parabéns cara… Ótima análise.

  • Lindo texto. Não esperava nada menos. 🙂

    Agora uma pequena dúvida. Você diz o quão esse jogo é a continuação do primeiro Dark Souls. Mas e o segundo? Ele faz referência ao jogo do meio?

    O que eu realmente quero saber é o seguinte: eu posso jogar o I e pular direto para o III?

    • Neozao

      Ele tem poucas referências, algumas armaduras por aí, etc. Nada essencial, nem em questão de estética nem em narrativa. É uma continuação do primeiro mesmo, dá pra jogar só eles dois.

      Mas recomendo jogar o 2 mesmo assim, eventualmente. É um jogo curioso. Agora que a série “fechou”, ele se tornou bastante interessante em relação aos outros por ser basicamente um spin-off.

  • Onde eu baixo o primeiro DARK SOULS ???
    Eu só joguei mesmo o PREPARE TO DIE.
    Valeu!

    • Neozao

      O Prepare to Die é o Dark Souls original mesmo! Só é a versão com DLC embutido.

      Porém, tem um predecessor, que é o Demon’s Souls – esse é só de PS3.

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