Qual é a desse tal de… Beyond: Two Souls

Por Neozao | 16/10/2013 – 22:06

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Vamos tirar uma coisa do caminho primeiro: Beyond é sim um jogo. A não ser que alguém esteja com vontade de discutir semânticas ou substituir todas as vezes que eu dizer “jogo” no texto por “entretenimento interativo”, vamos chamar de jogo mesmo. OK? OK.

O ódio todo que o David Cage  costuma receber é baseado na ideia de que ele faz “filmes”. Ele não faz filmes. Você não está pagando cento e setenta reais em um filme. Nem tudo o que vai no seu videogame tem, necessariamente, que seguir o mesmo padrão de jogabilidade e pode contar a história que a produção quiser. Eu sempre fico pensando se no começo da indústria do cinema (quando filmes deixaram de ser sequências de imagens e duas linhas de diálogo não-falado) as pessoas também diziam “mas lugar de historinha é em livro!”.

Não, o problema do David Cage não é fazer “filmes” ou fazer “QTEs de seis horas”, o problema é que o que quer que ele faça, ele faz mal. Se o problema fosse isso de “filme jogável”, jogos como The Walking Dead da Telltale, o primeiro God of War ou mesmo Shenmue não seriam tão aclamados hoje em dia.

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Tá, resolvidas essas coisas, vamos falar de outra coisa: não sei quantos de vocês chegaram a jogar Indigo Prophecy/Fahrenheit, o segundo jogo da Quantic Dream, lá no Playstation 2. Quem jogou vai se lembrar que o jogo larga toda a sua premissa de thriller sobrenatural na segunda metade pra abraçar profecias maias, zumbis e lutas contra uma encarnação da internet. Quem não jogou fica aí avisado.

O fato é que o gameplay de Fahrenheit era coerente do começo ao final: todas as cenas de luta ou cenas mais ativas num geral seguiam o mesmo padrão de apontar o analógico em determinada direção pra onde Lucas, o protagonista, estava indo na cena. Se você errasse a direção ele errava o movimento e a cena continuava de alguma maneira, ou se errava demais era game over. Heavy Rain largou essa pegada sobrenatural (apesar de terem esquecido algumas cenas no jogo com elementos sobrenaturais que foram descartados mais pra frente pelos devs) e se focou na parte humana mesmo da coisa: traição, psicologia, traumas, e no final era tudo sobre paternidade.

Não foi muito bem sucedido também, mas CARAMBA, aqueles olhos realmente eram incríveis! E, apesar da história de Heavy Rain ter sido barata, mentirosa, mal estruturada e tudo o mais, o problema maior residia justamente onde Fahrenheit tinha sido bom: a jogabilidade. Heavy Rain tinha uma jogabilidade completamente incoerente nela mesma: os botões não seguiam nenhuma padronização e, embora algumas cenas conseguissem passar bem a sensação de “esforço” fazendo você executar trinta comandos ao mesmo tempo, outras não o faziam, e assim o jogo dava a entender que carregar uma sacola de compras exigia mais esforço do protagonista do que se arrastar por uma tubulação cheio de cacos de vidro.

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Beyond: Two Souls (MUITO ALÉM DAS DUAS ALMAS) junta pontos desses dois jogos. A história sobrenatural – que chega a ser engraçada – de Fahrenheit e a jogabilidade esquizofrênica de Heavy Rain, talvez até um pouco pior por ela mesma não saber direito como deve funcionar. Os pontos de interação são marcados literalmente por pontinhos na tela, dessa vez, e pra você interagir com eles precisa apontar o analógico direito na direção onde eles estão. “Mas calma, em relação a quê? À protagonista, câmera, posição na tela?” e lhes respondo: também não sei.

De vez em quando era só apontar na direção onde o ponto tava na tela mesmo, mas também acontece disso não funcionar e tu ter que apontar pro ponto usando o personagem como ponto de referência, e se isso não funcionar também eu não faço ideia de qual é o critério, sério. Na segunda metade do jogo eu já estava apenas girando o analógico e torcendo pra interagir com algo no processo. Aliás, também acontece de você tentar apontar o analógico na direção do ponto e o jogo não reconhecer, fazendo assim com que a câmera vire, já que ela também é controlada no analógico direito – e consequentemente quando a câmera vira o ponto de referência também muda de direção, aí você tenta apontar de novo e a câmera vira mais etc.

Na história você é Ellen Page e está atuando como uma menina chamada Jodie, que tem um elo sobrenatural com uma criatura invisível conhecida como ”Aiden”. Dá pra jogar com o Aiden também, tu aperta triângulo e controla mais ou menos o que você controla quando desativa a gravidade e o clipping de Counter Strike – uma coisa sem corpo que pode se mexer livremente (ou até onde o “cordão umbilical” da Jodie deixar, sendo que isso varia de momento pra momento, considerando o que for mais conveniente na hora).

Nisso dá pra brincar de Poltergeist virando coisas e assustando os coleguinhas que te prenderam embaixo da escada,  quebrar portas, possuir alguns corpos e matar outros (embora não tenha nenhum critério pra tal NPC ser controlável ou assassinável além da boa vontade de quem fez os “puzzles” do jogo), dá pra ir pra outro cômodo escutar a conversa dos seus pais que meu DEUS DO CÉU TE ODEIAM POIS VOCÊ É “ESTRANHA”, bater nuns barris pra distrair guardas em missões na África enquanto você trabalha na CIA… enfim, dá pra fazer até bastante coisa e seria uma mecânica bacana se tu não estivesse sempre tão confinado em espaços pequenos.

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Para interagir com algo no controle de Aiden é preciso segurar L1 e fazer a ação que os analógicos pedem, como puxar os dois analógicos pra fora, empurrar pra dentro ou brincar de “ligue os pontos” entre uma alma e a cabeça da Jodie pra ela descobrir como aquela pessoa morreu (embora isso também seja inconsistente, já que depois você pode usar essa habilidade em objetos que não tem alma). Tem uma parte em especial que tem um monte de agentes da SWAT atrás de você, Jodie está escondida atrás de um carro e suas ações vão desde possuir um guarda e matar outros até fazer com que um helicóptero exploda na rua, tudo utilizando o Aiden. Infelizmente é talvez a única parte no jogo todo que te dá essa liberdade, e ainda assim é bastante restrito por, como eu já disse, não ter nenhum raciocínio envolvido em saber quando um guarda pode ser possuído ou morto – ele brilha laranja ou vermelho e você sabe que pode interagir, só isso.

Acho que o problema maior do David Cage, no entanto, é ele ser muito teórico. Ele pensa “ah, essa cena deu certo em Metal Gear Solid, então vou colocar uma parecida”. “Ah, as pessoas vão achar que isso aqui é tipo Half Life, então vai ter no jogo”; “PUTZ, como pude me esquecer daquela parte de Mother 3? Bota aí” – é bem óbvio que ele tentou homenagear muita coisa com esse jogo ou que ele teve ideias muito parecidas com outros jogos famosos por serem emocionantes.

MAS vejam bem, não estou dizendo que é uma cópia de nenhum desses, é só uma gama de referências pesada demais. Vê, ao mesmo tempo que ele homenageia a indústria, ele parece ter vergonha do que ela é, tentando não transformar jogos em filmes, mas sim transformar jogos em algo “maior” do que jogos. Fazer com que todo mundo evolua e seja mais maduro. Eu respeito esse sentimento – caramba, a maioria dos textos aqui do site falam sobre o estado dos videogames de uma maneira ou de outra – mas é uma responsabilidade grande demais pra uma pessoa só. E se essa pessoa que se responsabiliza por contar uma história emocionante e tira sarro de jogos como Lollipop Chainsaw falhar, a queda é muito maior.

Também tem o Duende Verde no jogo!

Também tem o Duende Verde no jogo!

E as falhas vão além (risos) de comandos inconsistentes ou história ruim (pois, como eu já disse alguma vez, achar uma história boa ou ruim é completamente pessoal – dá pra julgar o modo como ela é contada, no entanto), elas residem até na gramática do texto do jogo. Coisas bobas como troca de artigos (usar “the” ao invés de “a” ao se referir a objetos desconhecidos) ou repetição errada de algumas frases que dão a impressão de que a cena não foi escrita de uma vez só.

Em um momento um personagem é torturado, Jodie pergunta “você tá bem?” e ele responde “quer mesmo que eu responda?”. Em seguida ela pergunta se ele consegue se levantar e ele diz “claro, claro, estou bem“, sem a menor pontuação irônica, ignorando a frase anterior, como se fosse uma passagem escrita por duas pessoas completamente diferentes. É mais ou menos o que acontece quando eu escrevo algum texto com várias pausas no meio e aí a salada sobra pro Marcellus ou pra Shana a tarefa de editar e transformarem em algo legível.

Deslizes assim são amadores e tristes, meio humilhantes até pra Quantic Dream (que eu não duvido que tenha uma galera bem talentosa trabalhando sob ordens) e pro próprio Cage. Sério, é constrangedor até pro público, principalmente se pensarmos que o rapaz diz em público que o jogo será a melhor experiência narrativa que a indústria tem a oferecer e uns curiosos acabam se afastando por pensarem que, se esse é realmente o melhor, então nem vale a pena dar uma olhada nos “piores”.

Eu não sei qual é o tema de Beyond: Two Souls. Ele toca em muitas coisas – relacionamento abusivo, depressão, adolescência (essa de modo assustadoramente mal feito), rejeição, vida após a morte, abuso do governo, crianças em combate na guerra, psicologia – e não se aprofunda realmente em nada. Sua estrutura com cronologia fora de ordem faz sentido no final do jogo, mas em todo loading tem uma linha de tempo literal dizendo onde o próximo evento acontecerá, tirando qualquer trabalho mental que devêssemos ter pra juntar as peças. Essa mesma cronologia propositalmente bagunçada mais atrapalha do que ajuda, no entanto, pegando pedaços da vida de Jodie que tratam de um dos temas pro próximo evento tratar de outro completamente diferente, pra só voltar no primeiro tema uns cinco capítulos depois. De novo um caso de tentar abocanhar mais do que consegue.

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Tenho vontade de passar mais uns quatro parágrafos só falando de como a decisão “principal” do jogo é idiota e serve apenas pra pontuar o quanto todos os seus aspectos até ali foram mal executados, mas isso é um spoiler que eu não quero dar. Vocês saberão quando/se chegarem lá.

Pra não tirar todo e qualquer mérito do jogo, devo dizer que a captura de movimentos e a câmera num geral estão melhores que as de Heavy Rain. Estão realmente “cinematográficas” e tecnicamente apuradas. Mas é só isso.

No final, Beyond: Two Souls é sobre nada. É tão sobre nada quanto o Lollipop Chainsaw que o Cage criticou, mas acaba por parecer pior justamente por tentar ser sobre tudo. Não é sobre a vida nem é sobre o que há além dela. É uma tentativa sincera, admito, porém pífia, pior do que qualquer outro trabalho do Cage e pior que qualquer jogo que tenha ao menos uma temática sólida definida.

Beyond: Two Souls está disponível para Playstation 3.

Guilherme Alves “Neozao” sempre defendeu Heavy Rain nos debates da redação e era de longe o mais otimista em relação a Beyond. Foi encontrado morto na noite retrasada, ao lado de uma carta de despedida dedicada aos pais e à namorada.

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