Qual foi a desse tal de… Xenogears

  27/08/2014 - 17:34   psone, squaresoft, xenogears,  
 

Foi muito bom eu ter deixado pra jogar Xenogears depois de velho.

É que assim: muitas vezes a gente joga algo ali na infância ou adolescência e acha genial – sagrado, até – a ponto de nunca querer revisitar aquilo depois de algum tempo e se dar conta de que aquela qualidade não era inerente ao produto, e sim à nossa mente na época. Eu jogando depois de velho, portanto, já me faz estar em uma época mais razoável do que quando eu tinha quinze anos, o que evita esse tipo de questionamento de “será que é realmente tão bom quanto eu lembro de ser?”

Essas coisas acontecem quando a gente sai da adolescência pois, por via de regra, a adolescência é o período mais burro da nossa vida (ou é pelo menos o primeiro período que, quando passa, nos faz pensar “nossa, como eu era burro” – acredito que vá se repetir daqui mais uns cinco anos [e aí talvez eu tenha que rejogar Xenogears]).

Tem cerca de dezenove estilos de arte diferentes nessa capa americana. A japonesa é só um "X".

Tem cerca de dezenove estilos de arte diferentes nessa capa americana. A japonesa é só um “X”.

Muito bem, o ponto é que se você perguntar pra alguém aleatório sobre Xenogears a pessoa pode te dar absolutamente qualquer resposta (!), mas as mais frequentes serão:

a) é o melhor RPG de todos os tempos;
b) tem a história mais convoluta, juvenil e pretensiosa já feita e, portanto, é um lixo.

Alguns vão dizer que “envelheceu mal”, outros vão apontar o fato do disco 2 ser “inacabado”, outros serão um pouco mais específicos, mas é bem o tipo de jogo que cai no “ame ou odeie”, por mais nociva que seja essa mentalidade.

Em uma bela noitinha do que eu suponho que fosse uma sexta-feira, o casal de japoneses Tetsuya Takahashi e Soraya Saga estavam tão cansados da semana de trabalho que resolveram descontar tudo em um script pro próximo Final Fantasy (no caso, seria o 7) e o bagulho saiu tão periculoso que a Square falou “vocês perderam seus mármores, é?” e deu dez reais e quatro risoles pra eles produzirem o próprio jogo contanto que deixassem Final Fantasy mais tranquilo com suas situações levinhas como o envenenamento de cidades e tentativas de suicídio por parte dos protagonistas.

Enfim, quem sou eu pra julgar, mas pode ser que a Square estivesse certa quanto a querer deixar os robôs gigantes de Xenogears longe dos Chocobos de Final Fantasy, pois a escala de cores deles não combinaria muito bem. Foi aí que começou a produção dessa grande jornada pela mente humana que envolve robôs gigantes, gnosticismo, uma pitadinha de Freud, outra de Jung, o Torá e a bíblia cristã.

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Aliás, o fato de Xenogears usar tanta coisa de tantos lugares sem citar o nome de nenhuma delas é um dos pontos mais fortes do jogo. A nossa geração adora uma referência, uma piadinha com a cultura pop, ama poder apontar pra algo e dizer que entendeu por conhecer o material-base, mas ali ainda não tinha isso. Tudo o que Xenogears referencia é simplesmente material de associação. Você não precisa saber de nada daquilo que eu citei ali em cima pra entender completamente o jogo, mas, se conhece, consegue fazer a associação dos acontecimentos mais rápido. É como um bônus, não um requerimento. E por isso não é literal, também: o povo adora jogar um “ah, mas não é bem assim que a psicologia real funciona” e, porra, não me diga, amigo.

Curiosamente eu não vi nenhum estudante de engenharia ou mecatrônica falando que “ah, não é bem assim que robôs gigantes reais funcionam”.

Enfim, o jogo começa com uma ceninha que já joga na sua cara que é bom ir tirando o cavalinho da chuva, pois só vai entender o que é mostrado nela depois de umas cinquenta horas. Em seguida corta pro nosso protagonista: Fei Fong Wong. Ele mora em uma vila para a qual foi levado ainda criança e gosta de pintar. Nisso tem uma guerra entre reinos, acontece um monte de merda, aparecem os robôs gigantes e a vila é destruída, toda aquela coisa que a gente já tá acostumado.

É meio bizarro como o jogo funciona: são sprites 2D em um cenário 3D e você pode controlar o ângulo da câmera. A câmera, aliás, é de longe o que mais atrapalha no ritmo do jogo todo, mas não é algo que não dê pra lidar. O combate tem duas partes distintas: a pé e dentro do robô. A pé é por turnos com um sistema bacana de combos e no robô também é por turno com um sistema bacana de combos, mas você tem que cuidar de quanto combustível gasta.

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Xenogears é um jogo de muitas ideias. Eu gosto dele por isso! Não quer dizer que a execução delas todas seja muito boa, mas esse é realmente um caso de “o que vale é a intenção” – dá pra ver que na maior parte do tempo o jogo saiu exatamente do jeito que queriam que saísse, mesmo nos erros mais bobinhos. Navegar no world map é horrível, a velocidade do texto é ainda pior, e embora os acontecimentos importantes sejam bastante frequentes, devido à lentidão padrão do modo como o jogo se comporta parece que nada acontece nunca.

Mas de repente acontece, e como acontece. Acontece muita coisa, acontece muito rápido, acontece de modo muito confuso, mas acontece. Quando as coisas começam a acontecer elas não param até o final. Chega a ficar cansativo o número de conceitos que você tem que absorver em determinadas cenas.

E aí volta naquilo: o jogo não é e nem tenta ser “realista” nas suas referências, então fica ainda mais difícil de entender alguns de seus conceitos do que se ele simplesmente falasse “isso aqui você aprende no terceiro período de Psicologia”. Mas se fosse realista não seria Xenogears e não teria a mesma liberdade pra tratar desses temas com a leniência que o faz. Qual seria então a melhor solução? Nenhuma, eu acho. A melhor solução é deixar como está.

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Diz a lenda que a Square tirou o orçamento do jogo na metade pra alocar na produção de Final Fantasy VIII e por isso o segundo disco de Xenogears é como é. E como é? É, basicamente, uma visual novel. Os personagens te dizem o que eles fizeram (“e então fomos em tal lugar e matamos alguns monstros”) e vão narrando como a história se desenvolve, colocando uma lutinha ou outra aqui e ali pra disfarçar. Obviamente é quando o jogo se move mais rápido ainda e sua atenção é necessária em todos os momentos pra conseguir seguir tudo o que acontece. E aí você nota que, sim, o ritmo do jogo era lento por um motivo.

Alguns anos depois o Takahashi e a Soraya ganharam, de novo, uma grana pra fazer o jogo que queriam – dessa vez não da Square, e sim da NAMCO, e saiu Xenosaga, que também tem cutscenes de quarenta minutos.

Aliás, falando em cenas, eu tenho a impressão de que japoneses levam o termo “Deus ex Machina” de um modo diferente do ocidente. Pra quem não sabe, esse termo se refere a alguma coisa no final de uma obra que junta todas as pontas soltas da mesma – em peças de teatro gregas isso acontecia com um guindaste segurando a representação de um deus que aparecia lá e fechava tudo o que tinha que fechar. É geralmente usada de modo pejorativo, como uma maneira preguiçosa de fechar uma história. Só que no Japão parece que eles levam tal expressão – que se traduz como “Deus saído da máquina” – literalmente.

Tipo, que o Homem é capaz de criar Máquinas e que elas eventualmente se tornam Deus por alcançarem a perfeição sem as “limitações” que o Homem teria, e por isso levam essa coisa toda de robôs e bíblia como uma simbologia estética e não uma técnica de narrativa. Isso faz com que várias obras abordem esse tema de modo diferente e também é o que mais sai arqueando a sobrancelha da galera que adora chamar algo de “pseudo” ou “pretensioso” porque né? Tu é só um joguinho, rapaz, como ousa tentar me ensinar algo sobre crença? Aliás, como ousa tentar me ensinar algo? Você só tem o direito de fazer isso se eu estiver brigando na internet e precisar de um exemplo ao alcance da mão pra defender que JOGOS SÃO ARTE. Se não for esse o contexto eu vou ignorar tudo o que você tentar me falar pra manter meu ar de desinteresse.

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Enfim, eu gosto bastante dessas coisas, mas não nego que seja um alvo fácil de crítica. A tradução não é das melhores, é tudo meio confuso (tanto que eles lançaram em seguida um livro detalhando toda a história dos personagens e do mundo que não couberam no jogo), e, como eu disse, em alguns momentos o ritmo da coisa sofre um pouco devido ao próprio escopo. O negócio é que ainda tá lá, acontece, importa, e é bastante memorável.

Xenogears inteiro é uma obra bastante memorável. Algumas cenas são sensacionais, várias são boas, uma minoria que não passa de um dígito é ruim (essas ruins são todas as que envolvem o Chu-chu – vocês estão ligados). A música, composta pelo pomposíssimo Yasunori Mitsuda, é maravilhosa. Talvez não seja melhor do que a de Chrono Cross (também composta por ele), mas é linda mesmo assim. O jogo é pesado, toca em uns pontos até meio desconfortáveis, é brega, é romântico, e, embora tenha aquele começo de RPG japonês que todo mundo sabe como é, sai bastante da fórmula pré-estabelecida na hora de lidar com seus temas.

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Existem poucos jogos que tentaram alcançar algo do nível de Xenogears, e muitos cometem esse mesmo erro de tentar morder algo maior que a boca. Mas ele tentou algo mais, algo fora do padrão, e é tão amado e odiado hoje em dia justamente por isso. Pode ser que se ele tivesse saído como um Final Fantasy as pessoas não lembrassem tanto assim, por ser só mais um Final Fantasy. Se ele tivesse dinheiro o suficiente pra ser do escopo que queria, talvez acabasse influenciando a indústria o bastante pra alguma outra pessoa aperfeiçoar a fórmula eventualmente, e aí ele seria esquecido como tantos outros.

Eu acho que Xenogears só é o que é atualmente pelo número de coincidências que o fizeram não ser o que queria ser lá atrás, antes do seu lançamento. É meio bizarro pensar que no final um produto é realmente o resultado de seus sucessos e de suas falhas, mas a história de Fei Fong Wong tá aí pra provar isso.

Aliás, se fosse um jogo perfeito nem teria pra que eu escrever tudo isso, já que todo mundo já conheceria tudo o que ele tem a oferecer. Então sério, jogue Xenogears. O pior que pode acontecer é você encher o saco nas primeiras dez horas. O melhor que pode acontecer é você gostar tanto a ponto cair nesse texto de novo ao pesquisar “xenogears é foda” no Google.

Sobre

Guilherme Alves “Neozao” é game designer não-praticante, gosta de chá e de comer sobremesa com a menor colher possível.
  • Palas ‏ ✈

    that was my words

  • thiago girello

    HEY NEOZÃO! EU TAVA LA COM VOCÊ CARA EM 1998.
    TAVA LA NAS COMUNIDADES DE ORKUT
    PROCURAMO FOTOS DA ELLY JUNTOS
    TO COM VOCÊ AGORA CARA. SEGURA MINHA MÃO VAMO BRILHA!
    TEXTO FODA PARABÉNS

    sem mais

  • Caio Oricchio

    Uma parte importante do review “A nossa geração adora uma referência, uma piadinha com a cultura pop, ama poder apontar pra algo e dizer que entendeu por conhecer o material-base, mas ali ainda não tinha isso.” que definiu melhor o sentimento de sono que eu tenho diante de coisas do tipo “os fortes entenderão” e filmes e séries que botam um personagem aleatório falando “Obi Wan” ou “Sauron” pra dizer “OLHA PIADA INTERNA NÓS SOMOS IGUAIS A TODOS VOCÊS”.

    E enfim já estou aqui buscando um Xenogears pra chamar de meu, vamos ver quanto tempo leva pra eu enjoar.

  • Michel Oliveira

    Xenogears! Simplesmente o jogo que eu mais amo na vida – depois do Skyrim, claro. Já sou um velho senil e até hoje me emociono com a história. Menos com as partes da Chu-Chu (ela é fêmea, só pra corrigir).

    Sabia que rola outra lenda dizendo que, se não fosse o tal desvio de dinheiro da Squara pro FF8 no fim do jogo teríamos Ramsus no grupo para a batalha final. Ou antes, sei lá.

    • thiago girello

      Ouvi dizer que a lenda era desvio pro fim do Chrono Cross….

    • Neozao

      Isso, A Chu-chu, obrigado!
      E é, rola esse rumor de que o Ramsus seria jogável no segundo disco (o que seria bem bacana) mas fazer o quê, né?

  • Phillipe Lyra

    Xenogears é foda! E ainda tem umas partes cortadas da versão americana o jogo ser mais difícil. Acho que tudo que podia atrapalhar Xenogears aconteceu também. Eu preciso revistar ele mais uma vez.

  • Diretor Coulson, O Filho Legal

    Já sabemos quais serão as pesquisas do próximo FAQSFODA.

  • Michel Oliveira

    Neozão esqueceu de mencionar as (poucas) cenas estilo super sentai do jogo que são hilárias e ridículas. Mas não atrapalha o andamento da coisa.

  • Sephirot

    Meu segundo jogo favorito, só perdendo pra MGS4. E olha que joguei Xenogears em 2009, já adulto também.

  • Diretor Coulson, O Filho Legal

    Essa frase tem que ir pro memorial do GAMESFODA

    Tu é só um joguinho, rapaz,como ousa tentar me ensinar algo sobre crença? Aliás, como ousa tentar me ensinar algo? Você só tem o direito de fazer isso se eu estiver brigando na internet e precisar de um exemplo ao alcance da mão pra defender que JOGOS SÃO ARTE. Se não for esse o contexto eu vou ignorar tudo o que você tentar me falar pra manter meu ar de desinteresse.

    Simplesmente perfeito. Muitas pessoas tentam eufemizar seus próprios sentimentos e menosprezar os outros apenas pra ter essa atitude e parecer “superior” numa discussão. Acho isso triste, você acaba reprimindo justamente uma das melhores coisas que o entretenimento pode te dar: sentir e viver a obra.

  • farias

    Tem alguns jogos, tipo esse, que me deixam muito interessado na história, mas a parte do gameplay me compele horrivelmente. Simplesmente não sou para RPGs de turno, me acordem quando sair um anime ou algo assim contando a história.

  • http://edulacerda.tumblr.com/ edulacerda

    O jogo que comecei a jogar depois do lançamento da versão americana e entre idas e vindas só terminei este ano.

  • http://edulacerda.tumblr.com/ edulacerda

    Ah, eu nunca vi um jogo AAA decente em que a expressão “sérias restrições orçamentarias” encaixasse tão bem.

  • Matios

    Texto foda, Neozão! Quem sabe eu não tire a poeira do meu PS1 pra jogar essa belezinha.

  • Danilo Gutierrez

    Gostei muito do texto, parabéns mesmo!
    Engraçado, amo muito Xenogears e fui lendo o texto e percebendo que Persona 2 e xenogears são muito parecidos e talvez seja por isso que amo tanto ambos a ponto de colocar como meus rpgs favoritos.
    Seria legal se vocês fizessem um texto sobre a duologia Persona 2 para mostrar o que persona era.

  • Pedro

    Meu JRPG preferido. Queria muito joga-lo de novo, agora adulto. De qualquer forma, excelente o texto, mostrando que não precisa endeusar ou defender coisas indefensáveis em um jogo para que ele possa ser considerado foda e importante. Ele é o que ele é, e só isso que ele pode ser, e é lindo dessa maneira.

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