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CAFÉ NO BULLY

Quando a intolerância é combatida com intolerância

  24/08/2015 - 14:48    
 

A discussão mais recorrente que eu tive desde a virada do século é aquela sobre determinada mídia ou forma de expressão ser arte ou não. Quando o debate é sobre a minha favorita – no caso, os video games – eu sempre levantei batendo no peito para negar seu status artístico. Não vem ao caso para o texto os meus exatos argumentos nesses debates, e quem sabe a insistência na negativa seja uma simples birra de minha parte. Não com a arte ou expressão em si, mas com os caminhos que seus criadores vêm trilhando nos últimos anos.

Antigamente essa birra não era com os criadores, e sim com outros que ditavam regras e preceitos em cima da produção dos títulos. Fosse a própria indústria, controlada por publishers e empresários preocupados com a recepção do público ou pessoas “de fora” reclamando do nível de lascívia e violência encontradas em nossos jogos, para mim estava claro desde sempre que jogos digitais não possuíam um status de arte, pois pra mim a arte é livre – não cheia de regras.

Dando uma avançada no tempo, diversos anos depois, agora os jogos possuem em sua produção um caráter muito mais pessoal. É quase um crime enlatar um jogo sem alma, e ninguém (eu incluso) se questiona quanto a isso. Nós conseguimos quebrar todo o padrão rígido que nos vinha sendo imposto durante anos e agora os criadores podem buscar sua aceitação, crendo que estão deixando uma marca no mundo. Algo que vemos que eles procuram, já que têm convicção de que o que estão fazendo é arte.

Mas o que sinto é que apenas saímos de um buraco para entrar em outro. As mesmas pessoas que começaram a produzir seus jogos de maneira independente e quebraram essas ideologias agora parecem querer criar outro conjunto de regras que se assemelha em muitos pontos àquelas do passado. A preocupação com reações, público e moralismo parecem ser as mesmas (se não ainda mais forte) que antes.

Uma das desculpas para essa visão controladora (e a que será levada em conta aqui) é a preocupação com alguns temas sociais e a responsabilidade que o artista deve ter em passar uma mensagem positiva para o mundo. Dizem que o artista tem a obrigação de tratar desses temas em sua arte, representar minorias, esse tópicos que conhecemos bem . Quem não o fizer estará equivocado.

Se você é um artista (seja de jogos, quadrinhos, filmes ou qualquer outra coisa) e pensa isso do seu trabalho, eu meio que sinto pelo fardo que está colocando em suas costas. Mas não lhe recrimino, reconheço que é uma boa ideia. Existem muitas coisas que precisam ser mudadas no mundo e as mídias de entretenimento são excelentes meios de transmitir mensagens para um determinado público. Mas isso deve ser feito de forma natural: a escolha do uso desses artifícios é algo muito saudável e interessante, mas focar nisso cem por cento do seu processo criativo é um peso na sua responsabilidade como artista. Um peso louvável, mas um peso. Se você acha que para sua arte isso é interessante, entretanto, ótimo, siga em frente à sua maneira.

Agora, se você usa isso para dizer que todo artista precisa seguir a sua cartilha ideológica, aí está sendo tão babaca quanto o cara que recrimina os ideais do seu trabalho. Todo totalitarismo é burro, e não é porque acha que o seu caminho é o certo que deve crucificar tudo e todos que não agem como você. A escolha de trilhar qualquer caminho na sua carreira artística é completamente sua, mas pedir ao outro que adote a mesma postura como um dever moral é evangelismo.

Falando em crucificação e evangelismo, um dos grupos que costuma agir dessa forma, tentando impor sua visão do mundo sobre todos que pensam diferente, são os fanáticos religiosos. Grupo que não está muito em alta atualmente, principalmente entre os artistas, teoricamente uma galera mais progressista e mente aberta (quanta ironia).

Não gostaria de ser muito específico aqui citando exemplos exatos, mas como é um fato recorrente e recente, gostaria de abrir uma exceção. Um dos temas mais polêmicos hoje nesse quesito de “responsabilidade social” é o uso e criação do personagem com pouca roupa, bem como a erotização. No meio desse debate, grande parte dessa comunidade acaba torcendo o nariz para tudo que rola nesse âmbito e, como todas as discussões da internet dessa década, ninguém descasca o abacaxi (ou a tangerina).

Se existe personagem com pouca roupa ou muito “sexualizado” num jogo, quadrinho, filme, ou mesmo em uma arte qualquer isolada, já começam a aparecer os legisladores da nova regulamentação moral. Nem se preocupam em procurar ângulos, contexto, questionar motivos ou respeitar a vontade autoral. Pelo contrário: preferem usar alguns conceitos e respostas já predefinidas, sempre desviando a razão para si. Na internet vencer um argumento tem mais valor do que uma obra de arte.

Indo mais fundo no exemplo, um dos lançamentos mais esperados desse ano, Metal Gear Solid V, é um jogo repleto de referências culturais que, ao menos no que foi mostrado até agora, promete uma direção apurada e um primor artístico incrível. Entretanto, muita das atenções e críticas em cima desse jogo se concentram apenas na personagem Quiet, simplesmente por ela estar com pouca roupa no meio de uma guerra. Coloca na balança: um jogo que tem tudo para ser um exemplo de excelência para criadores e artistas de todo o mundo, sendo alvo de protestos por causa polígonos de Bikini.

Eu garanto que tem bem menos gente se masturbando para essa personagem do que pessoas cuspindo sem embasamento que ela foi feita só para masturbarção. Aliás, a ideia de que “sexo vende” e coisas assim gerariam grande influencia na sociedade é uma grande falácia dentro da nossa mídia. Raros são os jogos no topo da lista de mais vendidos com gente nua ou putaria, e jogos focados exclusivamente nisso beiram a marginalidade. Não precisa estar muito tempo interagindo com essa indústria pra ver algo tão óbvio: a birra é moral e não social.

A questão também não é o “péssimo exemplo” que a personagem está gerando, ou qualquer ladainha usada para gerar um argumento raso e simplório. O fato é que a personagem – agrade ou não – faz parte do conceito criado por um artista e complementa sua obra como ele a visualizou. Pedir para mudar algo nessa idealização artística porque ela não bate com a sua (seja ela qual for) é tentar forçar modelo em cima de algo que não é sua criação. Não concordar com algo não exige que esse algo se transforme para se adaptar às suas ideias ou às de seu grupo. Percebe que a imposição é tão péssima como a dos velhos valores?

Minha reclamação vai além do ponto de quebrar a liberdade do artista, incluindo também a tendência de achar que só o seu tipo de arte é válido. Um desenvolvedor que gosto muito uma vez me disse que não era essa a questão, mas sim que existe “arte boa” e “arte ruim”. Mas não se pode negar que, nesse âmbito, explicitamente se aceita que a arte é ruim quando ela não é o seu tipo de arte. A arte se torna ruim para você e para os seus quando ela não está te prestando serviço. Querem domar a arte, e o conjunto de todos esses criadores ditando regras e alienando os que não as seguem acaba por excluir artisticamente todos fora do “padrão”.

Não importa que você ache que está fazendo o bem com suas regras, elas ainda são regras, e você está tentando enfiá-las goela abaixo de todo mundo que não concorda com você. Todos os grupos que enfiam regras goela abaixo dos outros também acham que estão fazendo isso para o bem (lembremos dos religiosos que eu mencionei).

– Ah, mas o cara poderia fazer ~~~assim~~~… não custa nada.

Então use esse exercício mental dentro da sua própria arte: como você se sentiria se uma grande massa de pessoas dissesse pra você não fazer arte da forma como ama fazer? Não quero entrar no âmbito social, nem medir se quem sofre mais é o artista ou a parcela da sociedade que ele representa em sua arte. Mas sério, por que logo um artista, que vive e respira arte, iria querer fazer isso com outro, bloqueando e ditando a forma como se deve expressar seu talento? Para um bem maior? Ou quem sabe dois parágrafos atrás eu estava certo, e o artista que não faz a arte que você aceita é desconsiderado como um membro dessa academia metafórica?

Caso tenha se enquadrado minimamente nesse grupo de pessoas que repugnam outros que não pensam como você, mesmo que pela ira ao ler esse texto, pense intima e legitimamente se não existe nenhum artista que você conhece e admira, que com sua arte pode ter criado desgosto em outra pessoa com ideias semelhantes às suas. Tenho quase certeza que sim, pois a grande maioria dos artistas acaba ultrapassando barreiras e ultrapassar barreiras incomoda pessoas. Isso faz parte do processo criativo e de como as pessoas expressam suas emoções através de uma criação.

Alguns artistas controversos focam todas suas carreiras em ultrapassar ditas barreiras, usando artifícios que não são populares hoje (e não eram em outras épocas, por outros motivos). A sexualidade é um desses artifícios. Se surgisse uma lei que proibisse Bud Root de desenhar mulheres exageradamente voluptuosas em pouca roupa tenho certeza que ele preferiria simplesmente parar de fazer arte. Use esse mesmo exemplo para diversos outros artistas com outros artifícios em outros gêneros.

Então, embora eu apoie qualquer ideia e forma de arte, caso você ache que a morte artística de um autor vale a pena por qualquer campanha social, cabe aqui se questionar se você não está sendo radical demais. Possivelmente tão radical quanto os grupos que você recrimina.

Sim, pois se eu estou escrevendo esse texto é porque vejo que a intolerância contra quem não se encaixa nos padrões está quase tão absurda quanto a que os desenvolvedores pretendem derrotar com sua arte. Intolera-se a intolerância gerando mais intolerância. Criaram-se bolhas de aceitação ideológica (principalmente na internet, ambiente propício para isso) onde apenas aqueles com as mesmas ideias podem opinar validamente, e todos os outros dentro da mesma bolha aplaudem de pé. Isso toma mais espaço no nosso mundo que podemos imaginar, e enquanto pregamos liberdade nos prendemos cada vez mais a conceitos, morais e ideologias.

Para ambos os lados do cabo de guerra, profetas da revolução pregam abertamente e são aceitos como falsos messias, mas mantêm seus interesses e ganhos bem preservados, enquanto as causas reais andam a passos de formiga. Não existe liberdade pra ninguém quando aqueles que mais pensam lutar por uma causa vivem trancafiados dentro de suas próprias masmorras psicológicas.

Veja, não queria citar exemplos singulares por que comecei dizendo sobre pessoas que reclamam sobre personagens de pouca roupa, mas o mesmo se aplica a diversas situações, inclusive inversas. Estarei do lado de qualquer um que for recriminado por tentar fazer um obra feminista, de inclusão social ou qualquer que seja o teor social/político da obra. O problema, novamente, é a recriminação e falta de liberdade, em qualquer faceta que seja apresentada.

Para entendermos o caminho para nossos objetivos precisamos ouvir não apenas quem concorda conosco, mas também aqueles que mais destoam de nossas opiniões. É preciso debater sem julgamento, saber ser tolerante até com o que você não considera o ideal. Se não fizermos isso estaremos fazendo parte de mais um ciclo de novos padrões e imposições morais.

Liberar as ideias, liberar a arte, liberar o mundo não significa apenas liberar um ideal, um tipo arte e o seu mundo particular. Faça a sua arte, pregue a sua mensagem, mas jamais tente impor sua visão ao outro. Se isso nunca deu certo em nenhum momento da história da humanidade, por que diabos iria dar certo justo com a sua causa? Quando as pessoas entenderem que não é necessário criar um padrão ideal para vivermos um mundo ideal, aí talvez nem precisemos discutir se algo é arte ou não, nem ficarmos preocupados com trivialidades como sexo e sangue.

Acima de tudo, caso não tenha ficado claro ao longo do texto, essa é a minha opinião pessoal e você está livre para ter a sua. Não vou lhe julgar por qualquer que ela seja. Esse texto, assim como o próprio prega, também não é uma verdade absoluta e jamais quero impor essa ideologia em cima de ninguém. Mas se não tiver extraído absolutamente NADA do texto não venha me encher o saco dizendo o quanto eu estou errado. Simplesmente pense na sua cabeça “o Hynx é um imbecil que não sabe de nada” e continue combatendo a intolerância dos outros com a sua própria, ou apoiando quem o faz.

Hynx

Sobre

Um rapaz gordo com cara de mendigo, que só quer saber de: jogar, salvar state, carregar state, irritar pessoas, escrever, e quem sabe até ganhar um beijo doce da Rainha do Rodeio.

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