Sobre fanatismos e outros ismos

“Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo verdadeiro conhecimento da Antiga língua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruida, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron – só existirão em versões Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão” se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar… não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.”

(George Orwell – 1984)

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Eu imagino que tenha alguns anos que você não costume frequentar o GameFAQs, mas caso você vá lá, você vai ver que tá rolando a votação de “Melhor jogo de todos os tempos”, uma batalha de popularidade que eles fazem ano ou outro. Ontem à noite, enquanto eu digitava isso, Undertale – um jogo que foi lançado há meros três meses – estava ganhando por 2% de diferença de Pokémon Red e Blue.

Para motivo de comparação, vamos aos números: Undertale, em seus três meses de lançamento, vendeu, segundo o Steamspy, pouco mais de 400 mil cópias. Pokémon Red e Blue (e Green!), lançados há dezessete anos atrás, venderam, somados, um tanto mais de… 30 milhões de cópias.

Tem uma discrepância aqui. Você consegue ver qual ela é. Eu não preciso enunciar, né?

Deixa eu ser franco aqui: eu amo Undertale. Eu amo, e eu sei que eu fiquei chato que só pra todos os meus amigos para tentarem convencer a jogá-los também – e uma boa parte deles jogou, e amou também, e cada vez mais gente tá jogando e tá amando e tá tirando suas próprias conclusões sobre o jogo, mesmo que hoje as expectativas sobre ele já sejam maiores do que ontem. E eu sei que tem uma grande galera que ama também. Que se não houvesse, não haveria como essa votação estar como está – com um jogo que é obviamente menos conhecido mundialmente vencendo uma disputa de popularidade.

Eu não estou aqui para julgar os fãs de Undertale (eu sou um fã de Undertale!). Eu definitivamente não tô aqui para reclamar de uma votação de popularidade. São coisas extremamente irrisórias. Eu tô aqui porque eu acredito que existe uma coisa interessante a se enunciar por trás desses resultados, e por trás dessa prática. Eu acredito que existe uma mensagem bem clara aqui, que é a de, com a vitória, chamar a atenção para o título e fazer o resto do mundo – todos os outros milhares, milhões de frequentadores desses sites – perceberem um pouco mais que Undertale existe.

E novamente, eu não julgo ninguém por fazer ou não fazer isso. Como eu disse: irrisório. O meu questionamento aqui é um e um simplesmente:

Por quê?

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Comportamentos de grupo e psicologia das massas são assuntos que sempre me fascinaram. Ontem à noite eu estava lá divagando no Twitter sobre a ironia das redes sociais: um mesmo canto onde você amontoa todas as pessoas que já conheceu, sejam elas legais, estranhas ou insuportáveis. Relações humanas, em geral, tentam não se calcar nisso: você aprende a conviver com pessoas diferentes de você, mas em geral opta por passar o máximo do tempo com aquelas que se identifica. E nessas proximidades de pessoas que você se identifica vão nascendo as comunidades. É um comportamento extremamente normal – o ser humano é sociável em sua natureza e busca um ambiente onde possua o sentimento de pertencimento.

Com o advento da internet, as relações humanas se modificaram – não radicalmente, mas significativamente. Indo direto ao ponto, a internet facilitou a união de pequenos centros e comunidades que possivelmente não se conectariam com tanta facilidade sem ela. E como na internet todo mundo tem teoricamente a mesma capacidade de voz e todo grupo coeso acredita ser o detentor da verdade, não é de se estranhar que muitas redes sociais, por exemplo, estejam parecendo um campo de guerra atualmente.

Mas esse não é ponto central do que eu estou falando aqui. Basicamente, estou falando do conceito de fanbase – ou base de fãs, mas como o estrangeirismo traduzido não tem o mesmo impacto, eu vou manter fanbase mesmo – e o fanatismo proveniente delas. Isso não é algo exclusivo, lógico – de jogos eletrônicos a grupos musicais a ideologias a política a religiões a marcas de celulares a costelinha do Outback, qualquer um consegue identificar algo que possui um grande número de seguidores e como agem.

Humor involuntário: eu encontrei essa imagem em site chamado Cult of Mac. (é sério…)

O fanatismo, segundo o dicionário Michaelis, é:
1 Excessivo zelo religioso.
2 Facciosismo, partidarismo.
3 Dedicação excessiva a alguém, ou a alguma coisa; paixão.
4 Adesão cega a uma doutrina ou sistema.

Parece excessivo, não é? Mas se tomarmos ao pé da letra, é o significado real da palavra – o fanatismo é, em si, uma atitude proveniente da uma paixão desmedida, uma adoração fervorosa, meio absurda ou até incondicional a algo que o fanático se afeiçoa. A pessoa fanática por algo em geral se identifica com aquilo pelo qual fanatiza – motivo o qual muitas vezes algumas pessoas podem ser tão defensivas na hora de tomar críticas ou discutir opiniões contrárias. Como há essa forte identificação, quando você critica o objeto de adoração do fanático, este sente como se você estivesse criticando ele também.

A coisa que considero curiosa é que, na medida que uma fanbase cresce, é comum que ela crie certas regras e preceitos, tais como uma comunidade real. Em certos casos, a fanbase se torna maior que a própria obra – ela se molda em algo único, distinto, que muitas vezes pode transparecer valores até mesmo diferentes dos da obra que a inspirou. Isso é algo meio bizarro pois, aos olhos de quem está de fora, a fanbase é o que representa a obra – e por vezes o seu senso identitário é tão forte que ela consegue ser tão autocêntrica, tão exclusiva, que causa repulsa ou afasta a quem está de fora. Vamos lá: quem nunca recebeu olhares estranhos dos outros enquanto conversava efusicamente entre amigos sobre o final de Breaking Bad em 2013? Quem não rolou os olhos quando via seus próprios amigos discutirem pela bilionésima vez aquele episódio de Lost – ou viu fazerem exatamente o contrário? E por aí vai: a expressão do fanatismo pode causar tanto atração quanto repulsa, dependendo de onde provém e dependendo de onde você se encaixa.

A expressão do fanatismo se torna algo preocupante quando ela leva à intolerância – quando começa a atingir diretamente outros, ou impossibilita qualquer tipo de comunicação ou diálogo. É comum os grupos sentirem que sempre estão certos, então mesmo que venha um argumento plausível ou importante a ser discutido, ele será descartado – pois tal é a vontade de grupo. Essas expressões de fanatismo, em determinados contextos, tem causas devastadoras – de intolerância racial e religiosa a crimes de ódio a completas guerras, dentre outras coisas que vão muito, mas muito além de meros videogames. Não é preciso enunciá-los aqui de um a um, mas eu tenho certeza que vocês entenderam a ideia do negócio.

Olha essa Muffet, que fofa!

Talvez meu susto tenha sido ver a fanbase de Undertale – que é um jogo com um desenrolar extremamente empático e permissivo – se unir para uma vitória em uma disputa competitiva, que é basicamente um sentimento oposto ao que o jogo costuma “pregar”. Esse é um caso onde o empenho para tal vitória, particularmente, me pareceu um capricho orgulhoso – ainda mais quando o próprio criador do jogo disse no Twitter que não se importava que o jogo recebesse ou não vários prêmios ou notas altas, e que ouvir que as pessoas estivessem tendo experiências singulares com sua criação era muito mais importante para ele. Mas uma parte da fanbase – que não é toda – achou aquilo importante, e se empenhou pra tal.

Eu acho isso extremamente estranho – tanto a competitividade quanto ter que considerar o que o próprio criador pensaria sobre isso – algo extremamente bizarro, pois repentinamente parece que eu estou falando de algo muito maior, como uma religião. E o assunto em pauta não passa de um mero videogame. Me parece estranho pois quando você parte para o extremismo como forma de provar um ponto, você começa a partir para a ignorância. Sua opinião começa a virar uma crença e seu discurso começa a vitar uma pregação.

O discurso fanático é absolutista e exclusivista, não permitindo o diálogo e tentando vencer por imposição. É um caminho que exige ortodoxia, dogmas, preceitos e regras, e não aceita quem desvia desse caminho apenas julgando sem tentar entender. É um caminho que, caso você não preste atenção, pode te tornar cada vez mais próximo daquilo que você odeia. E pra quem vê de fora, é um caminho feio, muito feio.

E AH! Para a surpresa de ninguém, lá nos fóruns do GameFAQs a galera tá basicamente se matando. Já tem gente pensando em juntar dinheiro e pagar por cliques para fazer Undertale perder a próxima partida, contra FFVII. Tem gente vibrando, e tem gente dizendo que odeia o jogo por causa dos fãs. Enfim; tem gente agindo da forma exacerbada sobre coisas sem importância por causa de um fanatismo – ou um anti-fanatismo, que é a consequência mais provável de se esperar diante de qualquer fanatismo, ever – completamente bobo.

Meu intuito não é pisar no pé de ninguém, ou de sair apontando dedos. Isso tudo que eu falei aqui não foi só sobre Undertale, ou sobre parte de sua fanbase, ou qualquer coisa assim: foi basicamente um breve comentário sobre como o fanatismo dificulta milhares de coisas e cria conflitos muitas vezes desnecessários. Isso que eu falei poderia ser adaptado a qualquer outra expressão de fanatismo existente, seja dentro dessa mídia (sim, ainda existe gente que carrega bandeira de empresa!), seja em outras, ou seja em contextos muito mais palpáveis e de importância social. Mas é, talvez, só um aviso de cautela – uma forma de explicar que o discurso cego fanático cria mais barreiras do que as destrói. Às vezes é mais importante simplesmente aprender a aceitar as opiniões diferentes do que acreditar que você carrega a luz da verdade absoluta e precisa doutrinar a todos para que eles pensem como você. A educação não se faz através de discursos fanáticos unilaterais – se faz através de diálogos.

Até a próxima. Até lá, tentem continuar amando o que amam – sem precisar forçar isso a ninguém.

Sobre

Rodrigo "Rod" é de Salvador, Bahia. Estuda psicologia, finge ser escritor, e acha que entende alguma coisa sobre game design.

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