Qualé a desse tal de… VA-11 Hall-A: Cyberpunk Bartender Action

Todo mundo quer ser Cyberpunk.

O Cyberpunk é um conceito estético, geralmente usado em ficção, que demonstra um futuro (próximo ou distante) em que a tecnologia é bastante avançada, porém a condição humana não é – seja por essa tecnologia acabar se refletindo em ferramentas de opressão, seja por ela não ser tão acessível pra grande parte da sociedade, seja por ela ter se rebelado contra a humanidade. O ponto é que geralmente o cyberpunk vem com essa carga social ou ideológica de que o ponto do mundo é a humanidade e, se ela não está satisfeita/feliz/confortável, o avanço tecnológico não serve de nada. Transhumanismo, progresso, nada disso importa se continuarmos tendo os mesmos problemas atuais, selecionando quais deles são mais ou menos importantes dependendo de como você quer que sua obra seja digerida.

A diferença do Cyberpunk pra outros “-punk” (steampunk, dieselpunk, etc) é que ele tem toda essa coisa de exigir um discurso por trás, não é apenas um apanhado visual de engrenagens e vapor. Erroneamente acabam colocando ele no mesmo saco dessas, tratando tudo como só robôs e neons sendo que o ponto não é apenas esse. Juntando isso com o fato de que a nossa realidade em si está cada vez mais Cyberpunk e esses problemas que o formato gostava de tratar são apropriados por artistas e críticos contemporâneos em cima de absolutamente tudo, seja por romantismo, seja por falta de criatividade, exigindo que todas as manifestações criativas existentes tratem sobre os mesmos problemas como se essa fosse a única função do contato natural, essa estética se tornou banal.

Não há mais força no Cyberpunk, já que tudo é Cyberpunk. Tudo é a opressão, tudo é o medo da tecnologia, tudo é a desigualdade social, tudo é aquele panorama da cidade de Akira, tudo é irônico. Não precisamos de um gênero para falar sobre isso quando se tornou algo tão lugar-comum e ausente de honestidade. O que diferencia agora é justamente o visual: cyberpunk é o roxo, o sujo, o carro voador, a pixel art. Ele foi diminuído para a mesma camada dos outros “punk”, sendo que sempre foi muito mais do que isso. Abra a página do TV Tropes sobre tal gênero. É triste. Foi uma vítima da própria liquidez que tanto alertava.

Va11 Hall-A é sobre algo tão banal nesse cenário que, talvez ironicamente, talvez exatamente por isso, consegue ser grandioso. Não é que ele conte uma história grandiosa, ou que tenha críticas grandiosas, mas justamente por se focar em um minúsculo fator humano em um cenário primariamente não-humano, e por ter noção de sua pequenez, como é a pequenez da humanidade perante essa coisa da tecnologia, é que consegue ser tão bom – e que consegue se segurar num gênero que não parecia mais importante no que representava, nos fazendo lembrar de suas glórias antigas.

Você trabalha em um bar. É um bar escuro, num beco, com o nome de salão mitológico nórdico que serve a um deus que provavelmente ninguém mais lembra o nome, lá em 2069. Tem algo passando na TV: é uma imagem quase estática, de vez em quando com um ou dois quadros a mais de animação. Se quiser trocar de canal é só clicar na TV, o que provavelmente equivale a apertar o botão do controle remoto. Algumas das formas são meio Orwellianas, com dicas do que pode estar acontecendo fora do seu campo de visão, e você divaga sobre elas até alguém entrar.

A má-educação é esperada (embora nunca desejada) e quem entrou, após reclamar um pouco de seu emprego de jornalista, pede uma cerveja.

A cerveja custa duzentos dólares.

Lendo um pouco a entrada da cerveja no menu você vê que não é cerveja real, a de verdade foi perdida há algum tempo, se tornando só mais um pedaço da história daquele mundo que é bem claramente uma versão do nosso, mesmo. Mas ela custa duzentos dólares. E não é tão cara assim em comparação com as outras opções: a mais barata é oitenta, a mais cara é quinhentos, e o resto fica nesse limbo entre os cento e cinquenta e os duzentos e cinquenta.

Tem lá a receita da cerveja. Duas medidas do primeiro ingrediente, uma do segundo, duas do terceiro, uma do quarto, quatro do quinto. Tem que misturar (mas não bater, isso é importante!). Não vai gelo também. Todas as vinte e quatro bebidas do menu são uma combinação diferente desses cinco ingredientes (algumas batidas, algumas com gelo). Dá pra fazer um drink maior se dobrar os ingredientes – daí o cliente paga mais. Alguns não gostam, mas no geral é uma boa tática. Muitas delas tem álcool opcional, também: dá pra encher de álcool até a boca, nessas. Elas ficam maiores e tem a chance de quem pediu ficar bêbado, conversando mais com você, coisas assim.

Apesar de ser praticamente uma visual novel (aquele estilo de jogo japonês em que sua interação maior é a decisão eventual no meio da leitura) com vários personagens, estética “anime” e muito texto, a sua maneira de interação não é a de decisões entre opções de diálogo, e sim a de fazer bebidas. Tudo o que acontece no jogo é resultado de como você serve suas coisas. Um cliente pode chegar e pedir “o de sempre”, e se você não lembrar qual é o de sempre, não vai ganhar um bônus monetário no fim do dia. Ela pode falar simplesmente “quero algo doce”, e cabe a você decidir qual bebida doce servir – a que você já sabe que ela gosta ou uma mais cara, arriscando perder o bônus de “serviço impecável” em prol de um bônus no salário bruto em si. Oferecer bebidas específicas para clientes específicos pode abrir novos diálogos, até alguns novos personagens. Tudo se baseando na premissa de misturar ingredientes e servir essa mistura pra eles.

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A personagem principal, Jill, tem contas a pagar, um apartamento para manter, e um gato para fingir conversa quando não está no bar. A velocidade e eficiência com que serve as bebidas no trabalho vão se refletir no seu dinheiro, dado em todo fim de expediente, que pode ser gasto com pôsteres e enfeites para o apartamento ou para ser guardado pra coisas maiores, como a conta de luz. Jill se distrai fácil, porém: se ela queria uma árvore de natal no dia X e você não comprou, quando chegar no trabalho vai esquecer as bebidas dos clientes, exigindo um trabalho mental maior por nossa parte, sem o lembrete que sempre fica lá enquanto as fazemos. E esses clientes são bem diversos – o editor do jornal, a policial, o cérebro num jarro, o cachorro, a amiga de faculdade, o motoqueiro. Cada um deles tem uma história própria e fala sobre coisas próprias, que servem para estabelecê-los como pessoas e para estabelecer o mundo em si: as coisas estão acontecendo lá fora, coisas importantes, suicídios, problemas econômicos, a revolução das máquinas, tudo. Tudo o que a gente espera do Cyberpunk. Mas sem nunca nos mostrar – Jill não é a protagonista daquele mundo, ela é só a atendente do bar. Os protagonistas são as pessoas que estão lá fora, noticiam, apanham, assistem, se assustam e, no final do dia, vão extravasar na mesa do bar. Ela só escuta e responde, e nós, como jogadores, só servimos essa bebida por ser a única coisa que podemos fazer.

Essa janela pro mundo ser tão limitada em uma mídia que pode ser tão visual quanto o cinema é intrigante de uma maneira boa, sabendo que foi uma decisão muito consciente. Aumentar a exposição de tudo diminuiria seu impacto em um jogo feito pra ser um simulador de bar, então o que nós vemos é só o bar e as pessoas que frequentam esse bar. Eventualmente quando a história começa a engrenar com um arco maior, ainda é muito pessoal: é sobre a Jill, não sobre o mundo, que serve apenas como o fundo do copo, quando a bebida acaba e o gelo ainda está lá. E todas as noites ela lê as notícias, e as coisas acontecem independente dela; e ela entra no 4chan (chamado no jogo de “danger/u/”) e lê os tópicos que já estão sempre fechados. De vez em quando falam sobre seu bar, de vez em quando algum cliente seu escreveu uma notícia, de vez em quando parece que o apocalipse das máquinas está chegando, mas no fim é só sobre sua pequenez, sobre trabalhar num bar e talvez não gostar tanto disso, e sobre tentar adivinhar com quem o colega de trabalho transou na noite passada, e sobre até que ponto aquele seu cliente robô tem consciência do que é real, e sobre o quanto das pessoas de verdade é real, tratando essa dicotomia de “máscara de trabalho” e “máscara de amigo” como uma coisa só, já que enquanto o bar é o descanso de muitos depois do expediente, pra ela é o trabalho em si.

Tudo é escrito com a casualidade de uma conversa de bar, mesmo, com referências sexuais o tempo inteiro e passados constrangedores na faculdade, sem tentar camuflar essas coisas em poesia. É tão “cru” quanto tem que ser, e cada personagem é cru de um jeito diferente, já que não se tem nada a perder sendo sincero para a atendente do bar. É claramente um projeto passional, feito por um estúdio da Venezuela que admitiu ter que usar parte do dinheiro do financiamento para conseguir se alimentar dada a situação do país, mas que nunca é preguiçoso. Algumas coisas são até meio amargas em retrospecto, mas também não parece nunca um metacomentário exagerado.

É um jogo Cyberpunk e que do mesmo jeito que seus pais estéticos nos alerta sobre o futuro e outras incertezas, mas nunca nos esfrega na cara e nem o faz por ser o esperado de qualquer coisa contemporânea. É nada mais que um cenário completamente montado mas que não nos é completamente mostrado, em um viés que dá a entender que em toda essa discussão de opressão policial, condições de trabalho desumanas e a moralidade cinza da prostituição, para o cidadão comum o que mais importa é só o preço da cerveja.

VA-11 Hall-A Está disponível para Windows, PC e Mac através do Steam  por R$ 27,99 e através do site oficial  por $14,99

Sobre

Guilherme Alves “Neozao” é game designer não-praticante, gosta de chá e de comer sobremesa com a menor colher possível.

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