Essa série se tornou um dos assuntos mais comentados recentemente, então como fãs de quadrinhos não podíamos deixar passar. Uma das minhas reações favoritas ao seriado do Demolidor do Netflix, feita em conjunto com a Marvel Studios e ABC, é a de surpresa do grande público. Talvez porque a impressão anterior do personagem fosse a daquele filme adorável do Ben Affleck; talvez porque, embora seja difícil de admitir para o fã mais dedicado, o personagem esteja longe de ser da primeira linha de super-heróis da Marvel. É justamente por ser um herói alguns níveis abaixo de Capitão América e Homem-Aranha, em diversos pontos, que a série funciona tão bem. Matt Murdock, o herói-título, não é um nobre soldado inquestionável; ele está muito mais próximo dos bandidos que espanca do que dos caras bonzinhos.
Situada em Nova Iorque, cerca de um ano e meio após os eventos do primeiro filme dos Vingadores, a série foca no bairro de Midtown West – conhecido como Hell’s Kitchen – e sua reconstrução após a invasão dos Chitauri comandados por Loki. Logo de cara entendemos a humanidade do local e suas personagens. Não há menções aos alienígenas, mas sim ao dia em que “a morte caiu do céu”. Enquanto uma meia dúzia de sujeitos com poderes ou ferramentas apropriadas para repelir centenas de monstros lutava, os homens e mulheres sob seus pés eram apenas danos colaterais. Aqui, os seres pequeninos embaixo dos gigantes de uniformes coloridos são colocados sob uma lupa e vemos que todo o desastre e dor que vieram com a Batalha de Nova Iorque trouxeram mais problemas além do concreto quebrado e vidas perdidas.
Pessoas poderosas com interesses sombrios para Hell’s Kitchen viram no desastre uma oportunidade de ficar mais poderosas. Policiais, políticos, empresários, muitos se entregam à visão de um grupo de criminosos e contraventores, encabeçados por um homem que poucos sabem o nome, e menos ainda se atrevem a dizê-lo.
Neste ambiente somos apresentados a um herói que não é tão herói assim. Ele é só um cara com habilidades bastante peculiares que se cansou de ver o bairro onde nasceu e viveu se tornar corrupto e afundado em impunidade e resolve buscar a justiça em duas frentes. Matt é um advogado que se recusa a trabalhar para grandes corporações ou pessoas ligadas ao crime organizado de Hell’s Kitchen durante o dia e, durante a noite, põe uma máscara e caça aqueles inalcançáveis pela lei formal. Murdock é um vigilante em constante conflito interno, e é esse conflito que dá o tom dramático da série. De uma forma muito madura e verossímil, a história nos mostra um homem transitando entre as mais diversas concepções de certo e errado. Numa referência à sua própria religião, sua culpa católica é ainda mais profunda por saber que agir como juiz e júri vai contra sua doutrina. Ele sabe que, não importa o quanto faça o bem pelos habitantes de seu bairro, sempre será um pecador. Nesse ponto, sua interação com o Padre local é fonte de alguns dos melhores diálogos da série, repletos de pequenas e interessantes reflexões.
Ao mesmo tempo em que nos é entregue uma excelente interpretação para o clichê do vigilante mascarado fora-da-lei, as personagens que cercam nosso herói dão uma sustentação honesta ao enredo. Foggy Nelson, amigo de longa data e sócio de Matt no escritório de advocacia, traz um certo alívio cômico na medida, sem deixar de estar envolto na melancolia que um lugar como Hell’s Kitchen impõe em seus moradores. Karen Page, inicialmente suspeita de um crime que diz não ter cometido e posteriormente aliada da dupla em suas investigações, possui claros mistérios em seu passado que ainda não está pronta para contar. Claire Temple se torna a remendadora oficial de Murdock e, de certa forma, uma cúmplice após encontrá-lo numa caçamba de lixo, morrendo, e se torna sua voz da consciência, um vetor de luz em meio a tanta escuridão. A relação entre ambos é interessante e não se pendura em conceitos adolescentóides de romance de filmes de ação. Ainda, é a primeira vez que vemos o conceito de identidade secreta sendo utilizado de verdade numa obra da Marvel Studios. Poucos personagens sabem quem é o homem sob a máscara, e os que sabem pagam caro por isso.
Uma das características do personagem principal é saber com perfeição quem está mentindo ou dizendo a verdade. A série busca igualar o espectador neste ponto, sempre demonstrando quem está sendo honesto ou não, ainda que não nos diga qual a é a mentira sendo contada – da mesma forma que acontece com Matt. Ele mesmo acaba sendo alvo desta característica quando, ao intimidar um capanga da máfia russa, diz que sente prazer em agredir e torturar bandidos na rua. Quando indagado se aquilo é verdade por Claire, o Demolidor responde de forma evasiva, denotando com clareza o conflito do vigilante ainda em formação.
Curiosamente, os momentos mais leves da série são protagonizados pelo antagonista, Wilson Fisk, o Rei do Crime. Num traço já característico de produções da ABC (Breaking Bad, The Walking Dead), o “vilão” é mostrado em detalhes com seus traumas e suas inseguranças. Ele é interpretado de maneira tão impecável pelo aqui brilhante Vincent D’onofrio que não me surpreenderia se o episódio 8, “Shadows in the Glass”, ganhasse prêmios. Fisk é um homem com objetivos tenebrosos para Hell’s Kitchen, mas acredita de forma passional estar fazendo a coisa certa. E é tão brutalmente verdadeiro com seu interesse amoroso que acaba sendo natural torcer por seu sucesso com ela, assim como há empatia por personagens como Walter White e Daryl Dixon. Sua relação com seu braço direito, James Wesley – que indiscutivelmente rouba a cena sempre que presente – também é agradável e interessante. Diferente de Murdock, que age repleto de dúvidas e envolto em mentiras, cheio de ferimentos e sangrando, sempre em cenas escuras e sujas, Fisk é retratado como um homem direto e honesto no que diz, em ambientes claros e limpos, sempre filmado de baixo para cima, parecendo gigantesco e poderoso. Essa dicotomia é uma ferramenta poderosa na construção de ambos os personagens, vistos pela população como o diabo e o salvador de Hell’s Kitchen, respectivamente. Só vemos a real face desse salvador nos momentos de violência, quando o gigante poderoso dá lugar ao monstro convicto, agressivo e descontrolado. É uma daquelas ocasiões comemorativas em que o personagem de carne e osso é melhor que o original dos quadrinhos, igual o Bane de O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Muitas vezes é difícil lembrar que estamos no mesmo universo cinematográfico dos filmes da Marvel. Não há personagens cruzando as obras, aqui, apenas pequenas referências e uma ou outra piada sobre uma armadura de ferro ou martelo mágico. Estamos de fato lidando com um herói humano, pedestre. Quando confrontado por um ninja da seita d’O Tentáculo, famosa nos quadrinhos da editora, Matt tem sorte de sair vivo. Um soco ou corte causa danos consideráveis ao herói, diferentemente do que vemos em filmes com Capitão América ou Thor. Em uma das cenas mais aclamadas pela crítica, o Demolidor luta ininterruptamente com uma dezena de mafiosos russos num corredor, ferido e cansado, numa bela referência a Oldboy. A cada golpe seus movimentos ficam mais pesados e lentos. Ele sangra, urra, sofre. A ação toda é retratada no que o diretor quer que nós acreditemos ser um grande plano sequência, e nos mostra o combate de forma crua, áspera e sombria, como uma página de quadrinhos dos anos 80. Mesmo os motivos que o levarão a vestir o uniforme vermelho característico mais tarde são minimamente realistas e justificadas. Nada do herói multitarefas costurando spandex no porão de casa.
Apesar de se tratar de uma obra claramente violenta, Demolidor não busca justificá-la. É sempre interpretada de forma escura e crua, seja por parte do herói, do antagonista ou qualquer outro personagem. Embora ambos os lados acreditem que o derramamento de sangue seja o caminho certo a seguir, em nenhum momento a pancadaria ou torturas ou tiroteios e assassinatos são mostrados como algo positivo. Sempre há consequências e elas são sempre negativas, ainda que alguém seja salvo. Isto dito, as cenas de luta corpo-a-corpo são em sua maioria bem coreografadas e interessantes. Puramente físicas, poucas vezes os participantes se utilizam de ferramentas muito mais poderosas que facas ou os próprios punhos e habilidades, ágeis e impactantes. Esse tipo de abordagem ao combate é algo que eu gostaria de ver em um filme do Batman, que sempre é demonstrado como dependente de suas armaduras e gadgets.
Chega a ser injusto comparar Demolidor com seus irmãos cinematográficos (ou outras obras baseadas em quadrinhos; Arrow e Flash estão mais próximos de Power Rangers do que disso aqui, ambas sendo classificadas como a partir de 16 anos e Demolidor sendo 18 anos). A série beneficia-se claramente do caminho aberto por Nolan em sua interpretação do Homem-Morcego. É seguro dizer que, sem O Cavaleiro das Trevas, igualmente baseado em material escrito por Frank Miller, demoraríamos muito a ver esta série, se é que estaríamos aqui debatendo a respeito. Ser uma série de treze episódios, cada um com uma hora, feita direto para um serviço de streaming também dá muitas liberdades. É como se alguém na Marvel tivesse decidido fazer algo pelos pais que levam os filhos todo ano para assistir um Vingador bobalhão no cinema sem ver qualquer referência aos quadrinhos agressivos de trinta anos atrás. Demolidor não quer vender bonequinhos (mas espero que saia algum, rá rá rá) nem gerar spin-offs em canais da Disney. Aqui vemos a Marvel finalmente atingir seu potencial máximo, sem restrições, sem medo de sangrar; a ironia é que esse potencial todo não está numa guerra pelo destino da galáxia, mas na vida de pessoas comuns de um canto de Manhattan.
Parte de um plano semelhante ao que a empresa tem no cinema, Demolidor – que já teve a segunda temporada confirmada – é a primeira parte de uma série de obras feitas em parceria da Marvel Studios com o Netflix e ABC; a.k.a. Jessica Jones, Luke Cage e Punho de Ferro virão a seguir, nessa ordem, com alguns elementos estabelecidos para as próximas séries já na primeira. No final, haverá uma mini-série que unirá todas sob o nome de Os Defensores. Com a crocância assegurada, ficaremos de olho. Caso você tenha interesse em conhecer mais sobre o personagem, recomendamos a leitura de: O Homem Sem Medo, Amarelo, Diabo da Guarda, A Queda de Murdock e praticamente qualquer coisa do período do Brian Michael Bendis de 2001 a 2005, mas vai com calma que algumas dessas histórias possuem spoilers da série.