A segunda temporada de The Walking Dead da Telltale é uma obra prima da narrativa em nossa mídia de jogos eletrônicos. Essa afirmação de forma alguma é um exagero. O jogo como um todo é de uma qualidade tão rara que nem a própria empresa desenvolvedora conseguiu emular o feito em outro universo tão rico quanto esse pós-apocalipse.
Pode-se até mesmo advogar que é fácil escrever com o tema proposto e as linhas guia pré-estabelecidas pelos quadrinhos, mas o fato é que esse é um dos pouquíssimos casos onde o material derivado acaba tomando um corpo tão forte que quase nem se consegue traçar paralelos concretos com o original. A série de jogos já toma uma personalidade única e, fora o uso do mesmo nome, tem todo o mérito só para si nesse sucesso de temporada.
O motivo para ter alcançado essa conquista se baseia fortemente nos personagens envolvidos na trama e as situações que envolvem os mesmos; e o ponto chave para a diluição do jogador na mistura do universo proposto é a Clementine. Ela serve como uma ponte entre as impressões de quem a controla e o impacto que tais impressões se traduzem dentro do cenário do jogo.
Como já demonstrei em outros textos sobre essa temporada, a série continua sendo sobre a vida, extrapolando e usando de elementos fictícios para catalisar coisas que acontecem no mundo real, ou metaforizando tais acontecimentos. Portanto, como temos aqui uma garota que está aprendendo a viver (embora em um mundo pouco comum aos nossos olhos), vemos uma história sobre crescimento pessoal e a tal “chegada da idade”, quase um cliché em narrativas com protagonistas da mesma faixa etária.
Mas é interessante notar, primeiramente, que a protagonista em questão nunca passou antes por essa fase de descobertas e amadurecimento. Então o que para nós é incomum e inusitado para ela é a primeira (e talvez única) experiência. As situações extremas onde ela se encontra acabam sendo as ferramentas que ela tem para lidar com essa descoberta introspectiva.
Entretanto, esse não é o motivo pelo qual ela se torna uma personagem tão carismática e fácil de relacionar. Não existe aqui aquele cliché básico de que ela é uma garota forte porque têm que ser assim, porque o mundo mudou e todos tem que lidar com isso. Na verdade essa temporada introduz outra garota da mesma idade, na qual vemos um nível de maturidade completamente oposto. Isso está ali apenas para intensificar o quão singular é a experiência de vida da Clementine, ou o quão singular é a experiência de vida de cada um.
O conjunto dessas características e peculiaridades nesta personagem reflete uma história completamente pessoal e fácil de se conectar. Os temas abordados e vivenciados, sejam eles abertamente em primeiro plano ou alegorizados de alguma forma, são todos muito familiares a nós. Morte, abandono, traição, desespero, solidão, abuso de poder; todos esses são temas recorrentes nas nossas vidas embora não vivenciados de forma tão extrapolada como no jogo.
Esse relacionamento entre a nossa vida e a dela é o principal motivo para termos um conteúdo tão fácil de apreciar e se envolver. Esse diálogo é feito em um nível quase inconsciente dado o compasso do jogo, fazendo que você aja quase que instintivamente em suas escolhas. Isso acaba por eliminar até mesmo uma das poucas falhas do jogo que é a distância entre as opções dadas em alguns casos, como diz o ditado “oito ou oitenta”; mas com o pouco tempo dado para a resposta e a conexão criada com seus próprios valores você entende imediatamente o que quer escolher.
Escolhas abruptas na nossa vida geralmente não favorecem a politicagem e a reflexão. Em momentos tensos agimos emotivamente e, mesmo que seja apenas uma escolha simples de design, essa urgência na resposta acaba por afinar ainda mais o pano entre o real e o que está se passando na história.
É bom falar também da conversa atual que se tem sobre personagens mulheres nos jogos digitais, já que a Clementine é um exemplo fantástico de como se fazer direito e naturalmente. Sua força, sua vontade, a habilidade de sobreviver (não apenas a merda que virou o mundo, mas a tudo que gira em torno dela) são impressionantes. E tudo isso sem nunca destacar que ela é uma menina forte; ela é um ser humano forte. Isso não dá lado pra interpretação que deveria ser ainda mais difícil ter todas essas traços apenas por ser mulher. Impossível essa personagem não ficar marcada em você.
Alias, ser marcante é o fator principal por trás do fato de eu gostar tanto dessa série como um todo. Como disse no meu texto do ano passado dos melhores jogos do ano, eu escolhi Antichamber e The Swapper pois eles tinham partes em seu fluxo que com certeza são difíceis de se esquecer. The Walking Dead, tanto a primeira quanto a segunda temporada, fazem o mesmo, mas com suas cenas e momentos ao invés de suas mecânicas.
Se compararmos as duas temporadas, não temos como dizer que uma foi melhor ou pior que a outra. Elas são simplesmente sobre tempos e temas diferentes da nossa vida, evocando emoções e sentimentos diferentes. O impressionante é concluir que, mesmo em um ambiente completamente depressivo e desolador, a situação é pessimista, mas a mensagem final tem sempre um fundo inspirador e positivista. Nunca é um final feliz, assim como na vida nunca é, mas mostra que existe muito além da felicidade hollywoodiana para se apegar nesse mundo.
Então, se algum dia você se perguntar o motivo de tanta gente gostar desta série, a resposta é mais ou menos essa: porque ela é sobre algo que a gente conhece muito bem. E, como eu disse anteriormente, os zumbis são só uma desculpa para falar sobre coisas mais profundas.
Eu fui um dos que disse que não gostaria tanto de ver uma segunda temporada, por medo que caísse muito a qualidade em vista do que foi proposto na primeira. Mas com essa conclusão eu fico mais sossegado em saber que pelo menos em The Walking Dead a Telltale ainda está acertando muito a mão. Então, continuando na espera que continue no mesmo caminho (já que uma continuação é inevitável na indústria atual), que venha a terceira temporada.
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