Jogadores mimados e a liberdade criativa

Esse artigo contém informações sobre Earthbound, Mother 3, Metal Gear Solid 2 e Bioshock Infinite que podem ser consideradas spoilers pelos mais sensívei. Nada crítico, mas vou avisando pra ninguém reclamar depois.

Em Earthbound tem essa casa, em Onett (a primeira cidade do jogo), que custa sete mil e quinhentos dólares. Você pode comprar ela, se quiser ficar matando bichos durante umas dez horas ali pela área inicial, ou pode simplesmente continuar com o jogo e voltar depois, quando seu pai já tiver depositado muita grana na sua conta e você não tiver mais com o que gastar. Independente de qual for o seu modo de ação, o prêmio dentro da casa será o mesmo: você vai tirar uma foto (com aquele cara que fica tirando fotos de você em diversos momentos durante o jogo e depois essas fotos são mostradas nos créditos); vai poder ler um mini-conto que foi escrito pra uma revista pelo próprio Shigesato Itoi (o senhor responsável por toda a série Mother, que é um escritor e um entrevistador, não um designer de jogos) caso resolva explorar um armariozinho (nota: nenhum outro armário do jogo tem alguma coisa, apenas esse tem essa revista com esse conto); e por último, mas não menos importante, vai perceber que a casa não tem a parede de trás.

Vê, o jogo tem uma câmera fixa em cima, como a maioria dos RPGs dos 16bits, e não dá pra ver que a casa só tem três paredes até você comprá-la e entrar dentro dela. Você provavelmente nem vai ter lembrado dessa casa durante a sua primeira jogada do jogo e é bem capaz que na segunda você se lembre, lá pelo meio da história volte pra Onett, compre a casa, pense “que sacanagem isso” e continue – então você só vai lembrar da casa de novo nos créditos, quando aparecer a foto que você tirou lá.

Quebrando muito além da quarta parede

Quebrando muito além da quarta parede

Em Mother 3 a mãe do protagonista morre durante a primeira hora de jogo. Bem, no primeiro e no segundo jogo da série Mother (o segundo sendo o Earthbound, mesmo) o protagonista pode ir pra casa a qualquer momento e comer sua comida preferida, que foi escolhida por ele mesmo pra recuperar o HP, e é a mãe dele que cozinhará. Também tem a possibilidade do status “homesick” em Earthbound, que numa tradução livre é “saudades de casa”, então você precisa estar sempre em contato com sua mãe, seja aparecendo em casa entre uma luta contra alien e outra, seja ligando pra ela.

Aí em Mother 3 é de se esperar que a mesma coisa vai acontecer, já que é um jogo da mesma franquia e PEUN chega um rapaz falando que tem uma boa e uma má notícia: a boa é que ele conseguiu um dente de dinossauro e a má é que esse dente de dinossauro estava atravessando o corpo de uma mulher, que é sua mãe.

é...

é…

Uma um pouco mais famosa: em Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty, você joga só a primeira hora com Solid Snake e o resto do jogo é com Raiden (que recentemente protagonizou Metal Gear Rising), um cara que não tem nada a ver com o Snake. O Raiden, que foi treinado por video games e tem sua namorada na missão ligando o tempo todo, nunca sabe o que tá acontecendo. Inclusive ele toma uma mijada na cabeça no meio do jogo e tem o saco apalpado pelo presidente dos Estados Unidos pra se certificar de que era realmente um homem portador de pênis. O ponto é que o Raiden nunca foi mostrado nos artigos promocionais de Metal Gear Solid 2, ele foi escondido durante todo o tempo, inclusive os vídeos davam a entender que várias cenas protagonizadas por ele seriam na verdade protagonizadas por Solid Snake e isso enganou todo mundo, o que fez o Kojiminha ficar feliz e o resto da galera ficar muito puta, afinal, todo mundo queria controlar o Snake.

Até hoje o Kojima e eu achamos que Metal Gear Solid 2 foi sua obra prima, enquanto a maioria dos outros fãs “odeia” o jogo pois não deu o que estavam esperando. Alguns anos mais tarde, Hideo Kojima recebeu cartas com ameaças de morte se não contasse quais foram os eventos que sucederam MGS2, que ele planejava deixar em aberto (tanto que Metal Gear Solid 3 é uma prequel, deixando o final do 2 ainda paradinho lá no canto dele).

Metal Gear Solid 2 é o jogo da série com maior média na Metacritic.

dica: só um deles aparecia na capinha do jogo

dica: só um deles aparecia na capinha do jogo

O que esses três casos têm em comum? O fato de eles brincarem com as expectativas do jogador. Também tem o fato de dois deles terem sido feitos pelo mesmo cara e o terceiro deles ter sido feito por um cara que é fã desse cara, mas o ponto é que são jogos excelentes e que parte do atrativo deles é justamente essa quebra de barreira na indústria. Nenhum deles “desrespeita” o jogador, mas todos fazem o jogador passar por situações que ele não esperaria – e não falo de plot twists, falo de situações conceituais, mesmo.

Que diferença deveria fazer jogar com Solid Snake ou Raiden se ambos, em gameplay, se comportam da mesma maneira? O mesmo que um botão faz pra um, faz pra outro. Será que o fato de você não ter mãe durante os eventos do jogo tornou Mother 3 mais difícil? Não, não tornou, pelo contrário. Mother 3 é o jogo mais balanceado da série e tem um sisteminha de batalha baseado em ritmo que é uma delícia de se ver em ação. Será que $7500 fazem tanta falta em Earthbound assim? Vamos pensar que é um jogo, portanto você passa por diversas situações pra ganhar dinheiro e prosseguir com o jogo, que envolve andar e ler texto. Você conseguiu dinheiro, andou até a casa e leu um texto lá dentro – além de provavelmente ter sido uma das coisas que mais fez o jogo ficar marcado na sua memória, tanto que ficou marcado na memória dos personagens, mesmo que em uma foto.

Então qual é o motivo das pessoas ficarem nervosas quando um jogo as engana ou faz algo diferente do que elas esperavam? Por que todo mundo acha que deve ter controle sobre a história, obra, ou zoeira de outras pessoas? Será que o Motomu Toriyama, da Square Enix, ficou cinco anos trabalhando no jogo e não percebeu que Final Fantasy XIII é um “corredor” e se desesperou quando alguém na internet apontou isso, chegou na sala de produção e gritou “GALERA, URGENTE, PERCEBERAM QUE NOSSO JOGO É LINEAR ANTES DA GENTE” ou será que depois de doze jogos de exploração semelhante ela só quis fazer diferente? Na real mesmo, que diferença faz o lado em que você está apontando o analógico pra andar em um RPG oriental com foco no sistema de batalha e narrativa?

"calma, quê? como assim 'um corredor'?"

“calma, quê? como assim ‘um corredor’?”

A Comunidade Gamer tem essa mania de ser mimada, e recentemente aconteceu o ápice disso com o famoso caso Final de Mass Effect 3 (que inclusive rendeu um artigo aqui no GAMESFODA, também), de reclamar de tudo que não é exatamente o que tá na cabeça dela. Afinal, quando vai vir Kingdom Hearts 3? Tivemos cinco jogos depois de Kingdom Hearts 2, dois deles tão pomposos quanto, quatro deles relevantes na história e um deles sendo uma continuação direta e importantíssima, mas como não tem “3” no nome, ninguém acha que vale a pena e vá, era legal fazer piada na internet comparando com Half-Life (agora não é mais pois o 3 foi de fato anunciado). Tem também o caso de Bioshock Infinite, que reclamaram que “coisas dos trailers não chegaram no produto final” ou que “a primeira Elizabeth mostrada era diferente”. Sim, Bioshock Infinite, aquele jogo sobre mundos paralelos e metáforas pra indústria de jogos, recebeu críticas porque diminuíram o tamanho dos peitos da sua companheira ao longo do processo de desenvolvimento.

Existe um problema aí que vai muito além de eu estar tentando justificar o que os criadores de jogos fazem, e esse problema reside no público consumidor não saber direito o que quer. Ao mesmo tempo em que uma parcela aceita inovações, mudanças e diferenças nas suas séries preferidas, existe a parcela que reclama que “Call of Duty todo ano é igual!” enquanto diz que Spec Ops: The Line é um “shooter genérico”. É óbvio que nada vai agradar a todos, mas uma comunidade tão mimada e acostumada a ter exatamente o que quer só alimenta mais o Monstro da Homogeneização de Estilos.

O que é exatamente esse Monstro da Homogeneização de Estilos? Bem, ele é aquele monstro que reside no banheiro das Grandes Publishers e faz com que apenas fórmulas já provadas e efetivas em vendas passem a ser fabricadas. É por isso que hoje você vê todo jogo sendo “sandbox open-world”, ou vê que todo jogo tem “elementos de RPG e customização” e que todo jogo é um “action-adventure”. É por isso que todo ano sai um quebra-cabeça de Assassin’s Creed, um jogo montado por 12 subsidiárias diferentes da Ubisoft pra dar tempo de sair em um ano. É por isso que depois de Uncharted veio uma leva de falsos-platformers, como Enslaved e Remember Me. É por isso que Final Fantasy XIII é criticado pelo público (veja bem: pelo público) por não ter side-quests. É por isso que jogar muita coisa parece trabalho, já que é tudo pelos números. É tudo pra matar três coelhos nessa área pra pegar três peles e levar pra alguém que pediu e subir um numerozinho no canto superior direito da tela no qual se lê “QUESTS DE TAL LUGAR COMPLETAS: 3/5”.

hackeado por T3MPL4R105 D4 N3T

hackeado por T3MPL4R105 D4 N3T

Todo mundo aponta que a indústria está estagnada, mas ninguém contribui pra ela não se estagnar. Não digo nada sobre boicotar, digo sobre ter uma voz ativa menos tóxica. Xingue menos no fórum da Bioware e articule mais. O final de Mass Effect 3, seja do jeito que você gostou ou não, foi o final escolhido pela equipe que fez o jogo. Todo mundo tem todo o direito de achar algo ruim e argumentar sobre isso, mas não seja mais um crítico de lugar-comum. Procure ter suas próprias ideias sobre determinado jogo e tente entender que qualquer “falha” que você achou provavelmente também foi achada por alguém da produção que não pôde consertar.

Na maioria dos casos o diretor não tem poder criativo o suficiente pois quem tá bancando o jogo não deixa, com medo de uma fórmula “nova” não dar muito certo e o jogo ser um fracasso de vendas. Quando um deles tem poder criativo e/ou culhões o suficiente, criticam por ser algo muito fora da caixa, por ser “pretensioso” (pretensioso provavelmente é a pior palavra pra julgar qualquer coisa, galera, dica), por não ser o normal, por não ser igual aos anteriores – e quando é igual aos anteriores todo mundo critica por ser uma “callofdutyzação” da franquia. Dá pra ser mais razoável e saber que existem autores, artistas, designers e empresas diferentes e que todos têm uma visão da própria obra diferente. Alguns fazem a obra pro deleite de si mesmos, outros fazem pra lucrar, outros fazem pra lucrar e então terem dinheiro o suficiente pra fazerem o que querem.

Não é porque você pagou por uma obra que ela, obrigatoriamente, tem que ser do jeito que você quer. Quando pagamos por algo estamos comprando o trabalho de outra pessoa – e o trabalho dessa pessoa, geralmente, é nos enganar. Nós precisamos ser enganados pra um jogo ter conflito, precisamos ser enganados pra existir um clímax. Alguns autores gostam mais de nos enganar do que outros, pra no final a surpresa ser maior e alguns gostam de nos enganar pra abrir os nossos olhos e a gente perceber que gosta de ser enganado. É por isso que existem mágicos e é por isso que existem, também, comediantes.

Kojima mostrando o que fez com um "fã" depois de receber ameaças de morte

Kojima mostrando o que fez com um “fã” depois de receber ameaças de morte

Da próxima vez que existir um Castlevania: Lords of Shadow, não critique a mudança só por ser uma mudança. Não seja uma maquininha de hype, mas também não fique cego pelo ceticismo. Será que importa tanto assim o Dante ter cabelo branco, afinal de contas? Será que os Castlevania de Nintendo 64 são melhores que o Lords of Shadow por serem mais “Castlevania” ? Será que o problema deles reside apenas no fato de serem em terceira dimensão e não no fato de serem jogos completamente quebrados? Será que você ainda espalha pela internet a imagem do “Sonic Cycle”? Será que o problema maior, na verdade, não está nos próprios jogadores e no fato de serem mimados a ponto de um jogo ter que mudar o seu final pra agradar mais gente?

Se fôssemos pessoas mais razoáveis, talvez o Kojima e o Itoi (e o Levine, e o Suda51, entre outros diretores) não precisassem fabricar um exercício de quebra de expectativas pra fazer a gente perceber que nem tudo é do jeito que a gente quer. Se fôssemos pessoas mais razoáveis íamos rir com eles, e não nos ofender quando eles apontam que jogos (e histórias num geral) são, em sua essência, obras por si só, e que o nosso trabalho é fazê-las acontecer, não moldá-las ao modo como queremos. Existem jogos feitos apenas pra serem divertidos, existem jogos feitos pra se jogar em grupo, existem jogos bons, existem jogos ruins, existem jogos artísticos e existe pelo menos um autor pra cada tipo de jogo. Não alimente o Monstro da Homogeneização de Estilos – deixe ele morrer, e aí quem sabe o próximo The Last of Us tenha um pouquinho menos de confronto forçado.

O jogador livre de mimos e o Monstro da Homogeinização de Estilos enfraquecido (na real é uma imagem de Another World, mesmo)

O jogador livre de mimos e o Monstro da Homogeneização de Estilos enfraquecido (na real é uma imagem de Another World, mesmo)

Em tempo: o jogo favorito de Hideo Kojima, Goichi Suda e Fumito Ueda é o mesmo: Another World ( ou Out of this World). Talvez porque um jogo feito inteiramente por uma pessoa só e apenas no seu tempo livre, apenas por querer e não por “precisar”,  seja a síntese da liberdade criativa.

Sobre

Guilherme Alves “Neozao” é game designer não-praticante, gosta de chá e de comer sobremesa com a menor colher possível.

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