NEW AGE RETRO GAMER #43
Rayman Legends
Ubisoft Montpellier/Ubisoft
2013
Para todos os Shigeru Miyamotos, Ken Levines, Will Wrights e Yuji Horiis da indústria, existe uma pessoa que eu facilmente consideraria um gênio no meio, mas que sinto nunca ter sido valorizado como devia. Esse alguém é Michel Ancel. Funcionário da Ubisoft desde sempre, uma empresa hoje melhor conhecida por seus jogos de Assassinos e Espiões do que por títulos de plataforma, Ancel merece o meu respeito não apenas por compreender videogames como poucos, mas por compreender além de videogames. E se formos considerar seu último trabalho, apresentado com uma maestria e polimento digno dos mais inesquecíveis da geração, não há dúvidas: poucos compreendem videogames como ele.
Que o francês gosta de cinema e literatura não é nenhum segredo, visto o seu histórico. O pouco ortodoxo Rayman 2 carregava o subtítulo The Great Escape, referência ao filme de 1963, e usava a narrativa em uma época onde a maioria dos mascotes ainda tinha o bom senso de manter a matraca fechada. Menos sutil é Beyond Good and Evil, o qual de Nietzsche só empresta o nome: sua trama envolvendo a fotógrafa Jade em uma missão para desvendar uma cospiração parecia mais uma releitura de 1984 de George Orwell repensado como um desenho animado. Rayman Legends carrega menos desse hábito, se reservando aos nomes das fases, que referenciam dezenas de livros e filmes famosos. Haveria pouco espaço para cinema e literatura aqui: Rayman Legends é, em sua totalidade, um “jogo jogo”, e é fantástico por este mesmo motivo.
Sequência de Rayman Origins, de 2012, Legends é o tipo de sequência que víamos na época do Super Nintendo. Ele é mais: mais personagens, mais fases, mas cores, mais beleza, mais fluidez. Origins era incrível por seu próprio mérito, mas frente a Legends, ele quase parece um esboço, um beta de uma ideia melhor. Sim, Legends é uma daquelas sequências que superam em tanto o original a ponto de torná-lo praticamente irrelevante.
A jogabilidade permanece similar ao que já vimos em jogos anteriores, e considerando que o primeiro jogo saiu há quase duas décadas, é assustador ver o quanto do “lore” ainda é mantido sem causar estranheza. Como Rayman, Globox, ou uma das dezenas de Teensies e garotas guerreiras disponíveis, você deve pular, correr, atacar e flutuar para completar as fases. Lums são coletados pelas fases, Teensies são liberados de suas tão usuais jaulas, e existem dois níveis bônus em cada fase regular. Diferente de Origins, aqui todas as habilidades estão disponíveis desde o princípio, e a primeira fase em si é um tutorial velado de como elas funcionam.
A novidade fica com conta de Murphy, o fada-sapo-??? que mantém o mesmo sorriso colgate imbecil desde a sua primeira aparição em 1999. Em certas fases, Murphy aparece e pode interagir com objetos do cenário, movendo plataformas de um lado pro outro, girando discos móveis e paralisando inimigos pentelhos dando uns tapas nos zóio. E aqui configura a única diferença entre versões: enquanto no PlayStation, Xbox e PC essas funções são mapeadas aos botões, no Wii U (onde o jogo começou seu desenvolvimento) e Vita você controla o Murphy enquanto o computador se encarrega de controlar Rayman pela fase. Quem jogou no Wii U diz que lá é mais bacana – e não duvido nada, visto que aumenta a variedade e definitivamente não deve ser uma função pensada nas coxas – mas eu não joguei as duas versões para comparar eu mesmo. Eu joguei no PC, e nela eu controlava o Rayman enquanto o Murphy era um botão, e hora alguma eu senti que estava perdendo alguma coisa por causa disso.
As temáticas, cores e músicas de cada mundo são mais diversificados que no anterior, e fazem uma leve subversão ao usual “floresta, água, fogo”, mesmo que ainda carreguem a mesma ideia. O primeiro mundo, por exemplo, carrega uma temática medieval européia que reverbera pelo resto do jogo. O fogo é apresentado em um tema de Dia de Los Muertos espanhol, enquanto a água se mistura ao metal e à conceitos de filmes de espiões ao estilo James Bond em 20,000 Lums Under the Sea (obviamente brincando com 20.000 Léguas Submarinas de Jules Verne). A impressão que cada mundo passa não é única a ele, e no fim é mais fácil lembrar de tudo junto que um só: há um forte senso de homogeneidade e coesão em tudo. Em ação, todos os estilos mesclam perfeitamente, e as imagens quase parecem pinturas. É tão impressionante que faz Rayman Origins, na época elogiado por seus gráficos, parecer um jogo de flash.
A trilha sonora, do mesmo compositor de Beyond Good and Evil, talvez faça um trabalho melhor ainda em apresentar essas temáticas. Com um aspecto orquestral (e frequentemente pomposo), a trilha brinca entre o clássico, o medieval, o europeu, o latino, e o fantástico. É algo encantador, e que eu não sei explicar melhor por não entender bem de música, mas quem jogar vai constatar sua extrema importância. É fácil uma das melhores trilhas sonoras do ano passado, valendo ser apreciada inclusive fora do jogo.
Mas o maior trunfo de Legends é, inegavelmente, o seu level design. Quem jogou o Origins pode lembrar a complicação que era conseguir todos os Lums em uma fase. Aqui a parada é mais relaxada, e mesmo curtindo a exploração por segredos, você não sente que está o tempo todo caçando migalhas como acontecia antes. A questão é que, além de serem impossivelmente bem elaboradas, todas as fases (e elementos das fases) possuem uma maior fluidez nelas. Todos os cenários são mais amplos, e possuem menos divisórias – sinal de que a Ubi anda aperfeiçoando a Ubi Art engine e aprendendo mais o que pode fazer com ela. Inimigos são mais simples, plataformas estão no canto certo, a fileira de Lums se encaixa no melhor trajeto do jogador. A um ponto, é quase como se o jogo estivesse te guiando o tempo todo, mas isso é bom: ele atinge o ponto certeiro do ritmo, que é como eu descrevi em alguns dos nossos podcasts anteriores: “não deixar a peteca cair”. E Legends não deixa a peteca cair NUNCA. Todas as fases são bacanas e fluidas: uma delícia de se ver e jogar. Até mesmo as fases d’água, um dos maiores enigmas da história de jogos de plataforma, passam que você nem vê.
Ao final de cada mundo você tem uma batalha contra um chefe (que geralmente acompanham as melhores músicas) e uma fase musical com uma paródia de uma canção famosa que você já ouviu algumas vezes. Essas fases se comportam como mini-games de ritmo e são imensamente recompensadoras. As terminar as 35 fases regulares do Legends, você habilita uma cacetada de fases do Origins, além de fases de “desafio de corrida” onde você deve completar mini-desafios em tempos limite. Mesmo as fases do Origins, em si díspares com o design mais guiado do Legends, foram retocadas aqui e ali de modo a se tornarem mais ágeis e sem dúvida melhores.
Se fosse para comentar os pontos negativos do jogo, eu ressalvaria apenas UMA coisa: as fases musicais do último mundo, que são “remixes 8-bit” das fases musicais originais. Nelas a imagem é propositalmente zoada a ponto de seu jogo se tornar imperceptível, como modo a desafiar o jogador. É uma ideia imbecil, que penaliza o jogador sem ele ter culpa, e vai de conflito com toda a filosofia do jogo normal. Minha crença é de que essas partes foram encaixadas como filler em algum dos adiamentos de seu lançamento para esticar um pouco mais a duração do jogo. É algo pequeno, e definitivamente a minha única ressalva com o jogo; ainda assim, é algo irrisório e que não atrapalha o brilho presente em todo o resto.
Se eu já não fui excessivamente enfático até agora, deixe-me repetir: Rayman Legends é, por todas as óticas, um jogo excelente. Seu design é excelente, seu visual é excelente, seu som é excelente, sua jogabilidade é excelente. Do primeiro ao último minuto das 30 horas que joguei para fazer 100%, a sensação que tinha era a de um jogo criado por mestres, tal qual se tem ao jogar um Yoshi’s Island ou Chrono Trigger da vida. Não estou falando de um dos melhores jogos do ano passado. Eu estou falando de um dos melhores jogos de todos os tempos.
Se fossemos comparar com algum título de renome, eu diria que Rayman Legends é o Donkey Kong Country 2 dessa geração. É uma sequência que aperfeiçoa tudo do original, ao mesmo tempo que amadurece e fortalece sua identidade visual. Se Rayman não bate Mario, é apenas porque Mario tem “Mario” no nome – seu jogo, em si, nada deixa a desejar frente ao maior dessa área.
Talvez hoje ele seja melhor lembrado como um “ex-exclusivo” de Wii U do que como uma obra-prima, o que é injusto, mas ao menos o faz ser lembrado. 2013 foi um ano espetacular para jogos, e em meio a tantos grandes, Rayman Legends acabou ficando em segundo plano.
É simples. Se você ama jogos de plataforma, ou é desenvolvedor de jogos de plataforma, ou simplesmente gosta de videogames de qualquer modo, ou simplesmente ama a VIDA e diversão e todas essas coisas, por tudo que é mais sagrado, jogue Rayman Legends. É quase a sua obrigação. É uma obra-prima feita por pessoas que amam o que fazem, amam tanto quanto você, e esse amor e esmero exala por cada poro de tal obra.
Rayman Legends não é apenas o motivo pelo qual você joga videogames. Rayman Legends é videogame.
(O Tuba também escreveu uma análise sobre o jogo na época que ele foi lançado. Você pode ler o Qualé a desse tal de… Rayman Legends aqui.)
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