Nós já vimos essa história. Poucos dias atrás, um jovem americano protagonizou um triste episódio no estado de Connecticut. Após tirar a vida da própria mãe, ele entrou, armado, em uma escola primária onde assassinou 26 outras pessoas, em sua maioria, crianças. Na busca por uma justificativa, alguns veículos da mídia já começaram a pegar no pé dos famosos videogames. Então, antes que matérias como essa comecem a invadir o seu feed, vamos aproveitar essa ocasião e retomar este tópico já tão discutido: os jogos eletrônicos influenciam o comportamento violento? Antes de tudo, quero dizer que o que proponho aqui é menos uma “defesa aos joguinhos”, e mais uma discussão antropológica.
Vamos começar pelo indivíduo: Adam Lanza, de 20 anos. O rapaz era descrito pelos seus conhecidos como um rapaz “tímido, calmo e inteligente.” Vamos lembrar, por um momento, que as atitudes comuns do convívio social nem sempre dão dicas tão claras sobre possíveis comportamentos – a razão pela qual episódios como estes tornam-se populares é por virem de fontes inesperadas. Mas, de acordo com as informações que agora estão encontrando, parece que a mãe do jovem já sabia que ele possuía dificuldades e não deveria ser deixado sozinho (1:38). Outras fontes afirmam que o rapaz tinha uma “obsessão” por armas e objetos militares. Outras fontes afirmam que a mãe colecionava armas e era aficionada pela prática do tiro. Ao que tudo indica, Adam cresceu em um ambiente onde armas eram lugar comum. Outros aspectos tais como distúrbios neurológicos seriam difíceis de ser avaliados frente à situação. Todavia, não se pode negar que a sua história de vida, comportamentos, sentimentos, ambiente familiar, e todas as dezenas de outros fatores que formavam a vida desde indivíduo são significativos demais para ficarem à mercê do tão leigo argumento de que “ele viu em um jogo e resolveu imitar”.
Vamos ao segundo aspecto: o jogo. O cara jogava Call of Duty. Caralho, velho; difícil era ele não jogar. Vamos aos números: o último jogo da série, Black Ops 2, lançado no mês passado. vendeu 11 milhões de unidades nos Estados Unidos só na primeira semana. A série possui números astronômicos de mais de 100 milhões de cópias vendidas, e uma base frequente de milhões de pessoas jogam o game diariamente nos serviços online (e muitos destes jogadores são crianças, por total irresponsabilidade dos pais). A questão é que olhar pra um negócio que tanta gente consome, ver que uma pessoa que gostava disso fez algo errado e falar “opa, aí tem merda!” é possivelmente a coleta de dados mais tendenciosa do universo. Se esta simulação virtual fosse tão decisiva para essas fatalidades quanto a mídia quer que nós acreditemos, fatalidades como estas seriam astronomicamente mais comuns.
O último, e mais importante, é o contexto. Os jogos apresentam violência? Porra, lógico que sim. Mas me diz agora: de onde vem essa violência, afinal? Ela é originária e exclusiva dos jogos, ou ela possui um fundo cultural bem mais profundo?
Vamos pular para outros campos do entretenimento. Um dos filmes mais rentáveis deste ano, o (divertidíssimo!) Os Mercenários 2, reúne vários dos maiores astros de filmes de ação. Na história, um dos membros da equipe dos personagens principais é assassinado e, jurando vingança, o time vai à busca do vilão. Eu tentei buscar na internet alguma informação que dissesse o “body count” (o total de mortes) que ocorriam durante o filme – e não consegui. A única coisa que eu consegui foi encontrar um site onde o cara desistia no primeiro minuto de filme de tantas que eram as mortes simultâneas.
“Ah, mas o jogo é mais interativo que um filme, é diferente”: balela. As duas mídias bebem de inspirações culturais semelhantes, e não existem reais argumentos ou estudos que botem videogames à frente de filmes ou livros no que se trate de incentivar comportamentos. Se o ato de ter um controle faz tanta diferença assim, vamos então também falar da obsessão do entretenimento pelas TVs de alta definição, ou do cinema e seu empurrado 3D que quer cada vez mais que o telespectador “se sinta dentro da experiência”. É tão difícil assim de compreender? Desde sua existência, o entretenimento é baseado em uma relativa fuga da realidade para uma experiência que seja, para o nosso cotidiano, extraordinária. O problema é quando a pessoa utiliza o entretenimento de forma desregrada e o transforma em escapismo, tal como se fosse um grama do Soma de Admirável Mundo Novo do Huxley. Querer botar a culpa sempre no meio seria uma loucura. Se é assim, da próxima vez que alguém cometer suicídio por motivos passionais, vamos tratar de banir logo todas as obras de Shakespeare. Aquele cara não batia muito bem da cabeça.
Somos seres sociais: a influência dita nossos comportamentos o tempo todo, diariamente. Somos influenciados a usar tal roupa ou perfume antes de sair de casa de acordo com quem esperamos encontrar. Somos influenciados ao encontrarmos um conveniente mini-freezer com latinhas de Coca-Cola no final da fila do supermercado. Somos influenciados ao ligar a televisão, ao ouvir o rádio, ao usar a internet, ao almoçar, ao decidir que tal marca de celular é melhor que aquela. Você é a construção acumulativa de centenas de anos de evolução sócio-cultural, mesmo que você não saiba. E ainda assim, nós somos bombardeados a todo instante com estímulos que carregam de ideologias a filosofias consumistas, mas nós filtramos isso pois possuímos um treco na cabeça chamado cérebro, que reconhece o que realmente é necessário e evita que você se transforme em um zumbi sem opinião. Sim, você é influenciado por bilhões de coisas na sua vida, mas você não é um idiota.
Aí, voltando ao assunto em questão, vemos o desespero da mídia em listar quaisquer aspectos externos que possam ter influenciado aquele comportamento (sua preferência, obviamente, será aqueles aspectos que eles pouco compreendem). Mas ficar listando se alguém que comete uma atrocidade dessas joga tal jogo ou ouve tal música é nivelar o ser humano por baixo. É uma atitude covarde de uma mídia covarde, que seleciona bodes expiatórios para tentar eximir o indivíduo de suas próprias responsabilidades, apontando aspectos específicos e ignorando a situação mais ampla. Se ainda não se tornou óbvio, a mídia passa muito mais tempo enfatizando e repetindo o pior dessas tragédias ao invés de tentar esclarecer os motivos por trás delas e incentivar estratégias que evitem repetições futuras.
É deste modo que nos cegamos para os reais problemas, tal como quão o jovem é tão desvalorizado em seu contexto individual a ponto de engatilhar desvios extremos de conduta. Ou então como, de fato, tentamos negar que as pessoas podem precisar de uma ajuda profissional para tratar ou evitar ansiedades ou possíveis enfermidades mentais, sublimando-nas em qualquer apetrecho de distração que a cada dia temos como mais disponível. Ou porque você acha que tantas pessoas passam horas penduradas no Facebook todos os dias – não é para uma confirmar a sua aceitação social? Enquanto o bem-estar psicológico das nossas pessoas continuar sendo uma última prioridade constantemente empurrada com a barriga, é difícil que essa situação melhore.
A violência existe em qualquer lugar, mas muito da cultura americana acaba tendo um papel-chave ao ter toda uma glória nacionalista por trás de sua política de guerra e, graças à uma emenda em sua constituição, os cidadãos podem comprar armas legalmente com relativa facilidade; uma decisão que foi votada por plebiscito democrático anos atrás, e que (teoricamente) visava a proteção própria. Adam cresceu em um ambiente onde armas eram lugar-comum, e as três armas utilizadas no massacre foram compradas legalmente e estavam registradas no nome da sua mãe. Pois bem, frente à esta polêmica, não é de se surpreender que este aspecto já está sendo revisto pelo Presidente dos EUA.
Os videogames apresentam violência. Assim como o cinema, a literatura e a terrível mídia sensacionalista. Se algo, os jogos refletem o modelo de medo vigente em uma sociedade que vota, com o seu bolso, o que quer experienciar. Ninguém obrigou essas milhares de pessoas a tornarem um jogo onde você desce a bala em outras pessoas na série mais famosa da atualidade. O jogo se tornou famoso pois abraça o apelo popular da cultura da violência, que faz uma glorificação cega do “heroísmo” da guerra e a banalização da morte, provenientes de uma cultura social xenófoba onde as pessoas vivem em constante medo e precisam apontar “inimigos” para se sentirem seguras.
Então, por favor, eu peço: parem de inverter os papéis. A caça às bruxas já acabou faz muito tempo. Não são os jogos que tornam as pessoas violentas: foram as pessoas que tornaram os jogos violentos. Bem como nenhum idiota sai de um filme achando que aquilo é de verdade, pessoas mentalmente saudáveis sabem distinguir o real do virtual, e é uma educação digna que faz as pessoas definirem os seus valores de certo ou errado, bem como o seu próprio desenvolvimento cognitivo em um contexto psicossocial.
Banir jogos violentos não mudaria coisa nenhuma. Querem ir na raiz do que realmente motiva essa terrível violência para evitarmos futuras catástrofes? Então repensem todo o modelo cultural da nossa sociedade, e o que ela valoriza como importante. Só assim começaremos a compreender, enfim, como o modelo do medo dita as nossas vidas cotidianamente – e como isso é ruim para todos nós.
Pingback: RETROSPECTIVA GAMESFODA DE 2012: Foi uma longa caminhada até aqui | GAMESFODA
Pingback: Qualé a desse tal de…. FEZ? | GAMESFODA
Pingback: Rapidinha: Quando uma imagem importa mais que a tragédia | GAMESFODA
Pingback: Vamos mesmo ter essa conversa novamente? | Rádio Games Brasil
Pingback: Opinião: Quando a polêmica importa mais que a tragédia | New Age Retro Gamer