Mother 3 não foi o jogo que mais mudou a minha vida. Não foi o jogo que me convenceu que jogos podem ser arte (isso veio antes), não foi o jogo que me convenceu que jogos podem contar boas histórias (isso também veio antes), também não foi o jogo que me ensinou a noção de “game design” em qualquer uma das suas nuances. Não foi o primeiro jogo com final dúbio, nem o primeiro com começo dúbio. Não foi a primeira obra a usar a ingenuidade pra pontuar momentos não tão ingênuos assim. Não foi o primeiro jogo com temas políticos e não foi o primeiro jogo com temas familiares.
Esse também não é o primeiro texto sobre Mother aqui do site. O Luiggi escreveu sobre Mother 3 aqui e o Rod escreveu sobre Earthbound aqui.
Eu sempre escrevo sobre Mother 3 mas eu nunca escrevi sobre Mother 3 realmente. Na minha cabeça, todos os textos que eu faço são sobre Mother ou sobre Metal Gear (ou, em exemplos negativos, sobre Uncharted), em um nível ou outro. Uma citação aqui ou outra ali pra contextualizar e pra comparar um ou outro aspecto, mas nunca diretamente, algo completamente sobre o jogo. São jogos que estão na minha cabeça em um estado constante – eu sempre estou usando eles como parâmetro, mesmo que não exteriorize isso. Mother 3 não foi o primeiro a usar nenhuma das coisas que eu falei ali no primeiro parágrafo, mas ele serviu pra confirmar todas elas.
Não existe muita coisa que me faça ter orgulho de jogar videogame. Claro, tem vários jogos que me fazem ficar feliz por jogá-los, que eu recomendo em todas as oportunidades possíveis, que me fazem ficar com um sorriso meio idiota na boca ao ver o quão sagaz pode ser um level design multidimensional (um exemplo mais recente: A Link Between Worlds), mas isso é o tipo de coisa que só tem apelo pro público de videogame. Se você chegar naquele seu amigo que joga videogame esporadicamente e falar pra ele o quão perfeito é Metroid Prime ele vai te ouvir, mas se um dia chegar a jogar, vai precisar de você pra apontar tal e tal coisa que pra gente que tá no meio da mídia é natural de perceber como boa, mas pra qualquer um de fora é subjetivo o bastante pra ser imperceptível.
Eu tenho, no entanto, orgulho de escrever sobre videogame. Não vou ser arrogante o bastante pra achar que eu ensino alguém quando gasto centenas de palavras falando sobre RPG Maker num texto sobre Lost Planet, mas eu acho que pelo menos entretenho as pessoas que tem a paciência necessária pra ler textos aqui do site, que, convenhamos, geralmente são mais opinativos e analíticos do que só uma listinha de “gráficos, som, diversão”. O ponto é que eu gosto de escrever sobre videogame pra quem já sabe sobre videogame. É difícil você convencer alguém a prestar atenção em uma mídia baseando-se em argumentos como “level design”, assim como é difícil convencer alguém a assistir um filme citando a sua fotografia. Alguns jogos tornam essa tarefa mais fácil: eu posso chegar em alguém e falar que BioShock é sobre o Objetivismo mesmo se essa pessoa não costuma jogar videogame mas tem o mínimo interesse em política e a semente do interesse vai estar plantada. Mas não dá pra eu chegar nessa mesma pessoa, falar “cara, dá pra eletrocutar os caras se eles estiverem numa poça d’água!” e esperar a mesma reação.
Gosto de escrever sobre videogames justamente por isso: eu posso escrever sobre qualquer aspecto deles e apelar a um público diferente com cada um, mas a parte ruim é que todos ainda vão estar atrelados ao tema “videogames”. É por isso que existe o termo “dissonância ludonarrativa”, porque tudo tem que se relacionar ao negócio de “videogames” pra ser “coerente”, e é por isso que é tão difícil de se entrar nesse meio – muitos termos próprios, muitas barreiras, muito preconceito, muita infantilidade, muita autoafirmação que serve pra mascarar vergonha. É uma barreira quase intransponível entre o “gostar de videogames” e o “querer entender mais sobre videogames” e eu posso dizer, como alguém que escreve sobre eles, que é muito difícil de tentar deixar as coisas acessíveis sem parecerem rasas.
Se é difícil fazer isso na hora de falar sobre eles, imagina como é na hora de fazê-los.
Mother 3 é um dos meus três jogos favoritos justamente porque não tem essa barreira. Shigesato Itoi não é um “game designer” e ele fez o jogo mais acessível e bonito que existe justamente por isso. Mother 3 não é Farmville e não é Dark Souls, não é Kubanacan, não é Naruto, não é Pulp Fiction, não é Beatles. Mother 3 é Mother 3. Ele pode agradar quem é fã de Farmville, de Dark Souls, de Kubanacan, de Naruto, de Pulp Fiction e de Beatles.
Não é preciso ser “gamer” pra gostar de Mother 3, assim como não foi preciso ser um pra dirigí-lo. Se eu precisasse usar apenas um jogo pra expressar o porquê eu amo tanto videogames e convencer alguém a prestar atenção neles, seria Mother 3.
Se tivesse uma tradução em português, eu falaria pra minha mãe jogar (e possivelmente fazer um texto sobre). Se eu tivesse o privilégio de encontrar o Roger Ebert na rua enquanto ele estivesse vivo, o chamaria pra tomar um café e, quando eu percebesse que ele pegou o copinho de água com gás que boas cafeterias servem junto com o principal, diria casualmente pra ele ignorar toda aquela cruzada besta dos “jogos são arte” e só jogar Mother 3. Não ia pedir uma “retratação” na internet, só ia falar “sério, Mother 3 é um que tu ia curtir”. Então ele ia jogar e a gente ia se encontrar na mesma cafeteria uma semana depois pra eu ouvir o que ele achou e ele ia me falar que realmente, esse é bom, mas que eu não deveria contar pra ninguém que ele disse isso. Eu, é claro, iria concordar mas iria prontamente pra casa escrever que Mother 3 é tão bom que é possível que até o Roger Ebert gostasse.
O sistema de batalha de Mother 3 é sobre música. A narrativa é sobre literatura. Os personagens são sobre cores. Os nomes dos personagens são, também, sobre música. Mother 3 não aliena ninguém. Os seres mais poderosos do mundo do jogo são drag queens, você joga com personagens do sexo masculino, com personagens do sexo feminino, com animais, e isso é feito de maneira magistral porque não importa se fulano é assim ou assado – é pra todo mundo se identificar, mas pra todo mundo perceber que a história está lá e vai estar independente de quem está jogando. Você não é um protagonista mudo pra “se sentir na pele” pois o jogo não tem um protagonista, ele tem vários. O mundo é o protagonista e todo mundo que faz parte desse mundo, seja jogável ou não, também é.
Naquele texto que o Itoi fez quando Earthbound saiu no Virtual Console do Wii U, ele diz que conversava com pessoas que diziam que amaram ou se identificaram com o tema do jogo, mesmo que ele não tenha colocado nenhum. Mother 3, no entanto, tem claramente um tema. Vários temas, na verdade, e todos eles entregues com a sutileza que Earthbound nos entegou, mesmo este último não tendo nenhum.
Eu acho que o tema mais importante de Mother 3 é a acessibilidade. Não a “superação”, mas a acessibilidade. Os personagens todos são diferentes entre si mas eles não precisam superar as diferenças pra conseguir fazer o que quer que façam – eles simplesmente fazem e acabou, sem precisar passar por barreira nenhuma. E que sentido faria colocar um tema desses em um jogo inacessível? É por isso que o jogo pode ser pego por qualquer pessoa e ela vai gostar. Você não vai precisar explicar o conceito de “grind” pra ninguém que quiser que jogue. Nem “exploração” ou “dungeons” ou “eventos”. O jogo simplesmente acontece. Ele progride, vai sempre pra frente, sem se importar com as convenções que o RPG deve ou não deve ter. Ele tem tais convenções, mas elas não importam. Ao invés de moldar o jogo em torno delas, ele as distorce e as usa pro próprio benefício.
Mother 3 é um dos melhores videogames que existem por não se importar muito em ser um videogame. Ele é o que é, é único, é simples, é acessível. Eu gosto de Mother 3 porque sei que qualquer um pode gostar. Ele vem sem bagagem, mas deixa algumas quando vai embora.
É difícil colocar em perspectiva o quanto esse jogo importa pra indústria pois ele existiria mesmo se não houvesse uma “indústria”. Se existisse apenas um aparelho que respondesse a botões e emitisse sons, Mother 3 poderia existir nele.
Se você é um daqueles que sempre precisam provar pra alguém que videogames valem a pena, o modo mais fácil, rápido e efetivo pra isso é fazer com a pessoa que você quer convencer jogue Mother 3. Ele tem tudo o que poderia atrair alguém a jogar videogame mas não tem nada que só poderia ser entendido por quem joga. É o jogo mais simples de se aproveitar já feito. Talvez quem se ache “hardcore” não vá gostar pois é “linear”, é “fácil”, é “infantil”, mas sinceramente, quem faz parte disso é exatamente o problema que faz com que tanta gente continue olhando pra videogame com olhos meio tortos.
Mother 3 sabe que jogar videogame não é um privilégio.
Escrever sobre Mother 3 é tão bom quanto jogar Mother 3, e esse é o maior elogio que eu posso dar. Geralmente eu acho melhor escrever.
E por isso eu demorei tanto a escrever diretamente sobre, como apontei no começo do texto: é um dos poucos casos em que eu não sinto essa necessidade de masturbar a mente escrevendo pra fazer as últimas dez, doze, vinte, trinta horas que gastei num jogo terem valido a pena.
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